O que adianta encher este espaço com palavras se uma só devia valer, e não vale?
Carlos Drummond de Andrade
Todo escritor, já nos seus passos iniciais, precisa responder a uma pergunta crucial, que definirá sua carreira, seu caminho, sua obra exaustiva, sua maneira de estar no mundo, a construção de uma obra que levará anos e anos, não só um livro depois do outro, mas uma letra depois da outra, uma respiração depois da outra, de cigarro em cigarro, como diz a canção popular, até conhecer a palavra final, feito a sensação que dominou Ferreira Gullar ao escrever o magnífico Poema sujo — assunto desta coluna na edição de fevereiro.
A isso chamamos de “ponto de vista”, que muita gente confunde com “foco narrativo”, completamente diferentes e talvez opostos, mas definitivamente essencial ou definitivo. Sim, a questão é definitiva. Ou seja, definirá a obra para sempre, eternamente. Se é que existe eternidade, se não existe, que seja criada, como tudo mais obra na obra literária.
O ponto de vista, procuro dizer, é como vemos o mundo, o comportamento, a ética ou antiética, a desgraça ou o zelo, aí está a questão: tudo o mais resultará deste ponto de vista, romances, novelas, contos, poemas, teatro; seja o que for. É claro que este ponto de vista pode mudar de obra para obra ou até de personagem para personagem. Dessa forma, a obra torna-se enriquecedora e não enfadonha, com personagens de grande caráter e personagens de nenhum caráter; uns cômicos, e outros severos, intimistas; quietos e calados.
A obra literária não perde sua mobilidade interior ou a riqueza do seu enredo por causa do seu ponto de vista. Uma coisa não altera a outra. Muito pelo contrário.
Sabe-se que Kafka, por exemplo, considerado um autor muito severo e absolutamente crítico do comportamento humano, gostava de rir muito enquanto lia os seus textos para os amigos. A princípio, inimaginável.
Estes assuntos são discutidos no meu livro Os segredos da ficção, a meu modo a construção da narrativa a partir da minha experiência como ficcionista, com mais de quinzes obras, entre romances, novelas e contos, que causou muita inquietação entre os teóricos porque, conforme se diz, a reflexão sobre a obra literária cabe a partir do ponto de vista que, não raras vezes, é substituído pelo narrador, um que pensa, o autor, e outro que narra, corretamente chamado narrador, como expõe sempre Clarice Lispector em A hora da estrela, basta uma leitura cuidadosa.
Este assunto vem aqui para debate por causa do livro A intensa palavra, crônicas inéditas em livro, publicadas por Carlos Drummond de Andrade entre 1954 e 1969 no jornal Correio da Manhã. Esta coletânea integra o projeto da Record de republicação das obras de Drummond, incluindo os diários, crônicas e poemas. Um projeto que enriquece muito a bibliografia brasileira, sobretudo no momento em que os livros parecem desvalorizados.