A biografia de Graciliano Ramos, escrita por seu filho Ricardo Ramos, não é tão fragmentada quanto se apresenta, nem tão incompleta quanto se poderia sugerir — é um retrato completo e sem retoques deste que é, seguramente, um dos escritores mais bem sucedidos da literatura brasileira. Um retrato inteiro, justo e profundo de um escritor que a novelística nacional convocou para realizar uma obra inesquecível. O fragmentado talvez venha por conta da humildade e da dúvida. Humildade porque Ricardo talvez se considerasse despreparado e incapaz de realizar tarefa indiscutivelmente gigantesca — a de escrever a biografia daquele que acima de tudo era seu pai; e também teria de tomar partido em muitas circunstâncias o que poderia lhe tirar a isenção de biógrafo. A técnica do texto é episódica, mas não isolada, os dados, em muitas ocasiões, não se juntam ou até se afastam para formar a reunião de muitos outros textos que nem sempre se explicam ou se justificam. E, mesmo assim, com invejável unidade. Tudo muito claro, até porque sabemos que Ricardo Ramos era um autor de vanguarda, vindo daí o seu propósito da fragmentação.
Uma maneira de dizer, de falar, uma técnica; nunca um medo, uma esquisitice, uma fuga. O que é, inclusive, destacado por Silviano Santiago na introdução.
Ricardo narra a sofrida e intempestiva história nacional nos fins da década de 1930, na década de 1940 e em princípios de 1950. Em sua prosa escorreita, aflora a ironia cúmplice com a do pai e o bom humor que talvez tenha faltado a Graciliano em algumas situações.
Saindo ainda mais do que do geral para o particular, quando narra a visão do pai arrumando-se no banheiro, fazendo a barba e vestindo-se com meticulosidade, num instante íntimo, pouco comum nos outros biógrafos, até pelo natural distanciamento. De certa maneira, Ricardo parece ver naquele instante o mesmo cuidado do pai no instante da escrita, com aquele rigor do estilo tal vida, tal escrita:
Sua toalete era meticulosa e demorada: limpar a nicotina dos dedos à custa de pedra-pomes, lixar as unhas, escanhoar-se, depois no chuveiro duas ou três ensaboadas, esfregando-se todo (as orelhas exigiam cuidados pacientes), afinal enxugar-se ou, melhor, imprecisos, insuficientes, para friccionar-se longamente com a toalha. Ao vestir-se, estava de um vermelho arroxeado.
Assim é que o homem que se banhava era o mesmo que escrevia, com mesma meticulosidade — um não se distanciava do outro: “de preferência escrevia a lápis, sem usar borracha, mas cortando palavras, frases ou trechos indecisos, imprecisos, insuficientes, para seguir ou sobrepor mais definitivos… Pelas margens, nada. O essencial das mudanças nas entrelinhas”.
Observe-se que ambos os movimentos se parecem, sobretudo no rigor. O que significa, de verdade, que a literatura é grande à maneira que ambos caminham juntos, como já se disse anteriormente em outras palavras.
Mais tarde Ricardo destaca: “Nunca vi meu pai de camisa esporte”. Com esta frase — acrescenta — “comecei um conto, faz tempo e no texto a questão, só ela, é verdadeira”. Realmente nunca usou camisa esporte, amanhecia de pijama, trabalhava. E, em seguida, traça um perfil que novamente reitera o homem que escreve e que se arruma sem perder o prumo ou a medida: “Depois do banho já se vestia par sair, com a mesma elegância das frases em sua obra literária”, sobretudo em Vidas secas: uma das poucas obras-primas verdadeiras da literatura brasileira. Assim:
Terno, paletó jaquetão, cinto e suspensórios, camisa branca de clarinho engomado, sapato e meias pretos. Mais para o escuro, mais para o sóbrio. No geral aprumado.
Não se pode imaginar um Graciliano diferente. Um tipo profundamente psicológico, embora com uma vida trágica e dolorosa. 1)Foi preso por uma vulgar deduragem política que o julgava comunista na ditadura de Vargas… por isso viajou trinta dias no porão de um navio imundo sem saber aonde estava indo. No Rio passou vários meses preso na Ilha Grande, sem culpa formada; 2) o filho Márcio matou um colega de pensão e depois se suicidou. Por isso mesmo, sempre acreditei que seu estilo sóbrio era resultado de uma densidade interior.
Sempre tive grande curiosidades pela roupa dos escritores. Jorge Amado, em oposição a Graciliano, apresentava-se sempre de bermudas folgadas, sandálias e camisa colorida. Ariano Suassuna vestia-se de terno branco, gravata e sapatos pretos. Osman Lins e Antonio Callado, impecavelmente vestidos em terno alvos, cinturão e sapatos sempre impecavelmente engraxados.