Minimanual do guerrilheiro urbano: leituras e prismas (7)

A originalidade da concepção de organização revolucionária de Carlos Marighella
Carlos Marighella, autor de “Minimanual do Guerrilheiro Urbano”
27/02/2019

Mudança de rumo
Na última coluna anunciei uma comparação entre o Minimanual do guerrilheiro urbano e o ensaio La guerra de guerrillas. O contraponto entre Carlos Marighella e Ernesto Che Guevara pretende esclarecer a originalidade da concepção de organização revolucionária do brasileiro. Isto é, à tradicional e rígida hierarquia verticalizada da “guerra de guerrillas”, Marighella inovou com uma forma organizativa propriamente horizontal e fundamentalmente sem qualquer rigidez hierárquica. O cotejo com a reflexão de Guevara ilumina a singularidade do pensamento de Marighella — e nos próximos meses retornarei ao tema.

No entanto — e para minha surpresa — fui corretamente advertido por leitores sobre a necessidade de aprofundar meu entendimento da noção de rede no Minimanual, pois nessa noção, creio, encontra-se a potência do texto. Por isso, antes de proceder ao paralelo com outros textos clássicos do pensamento revolucionário, devo dar um passo atrás e explicitar o conteúdo e as consequências do conceito de rede no âmbito da Aliança Libertadora Nacional (ALN), a organização que deu corpo às ideias de seu fundador.

Aceito a crítica e mudo o rumo da prosa.

Um olhar contraintuitivo?

Logo na abertura do Minimanual, Marighella ofereceu uma interpretação sobre as causas da emergência da guerrilha urbana:

A crise crônica da estrutura que caracteriza a situação brasileira e lhe provoca a instabilidade política determinou o aparecimento da guerra revolucionária no país.[1]

O diagnóstico de Marighella surpreende.

Vejamos.

Como vimos, o Minimanual foi concluído em junho de 1969. Na época, o país era presidido pelo general Artur da Costa e Silva. Sob seu governo em 13 de dezembro de 1968 decretou-se o Ato Institucional número 5, o tristemente célebre AI-5, que levou ao fechamento do Congresso e à institucionalização da repressão, vale dizer, da tortura como política de estado. Em 31 de agosto de 1969 o general sofreu um acidente vascular cerebral e em seu lugar deveria ter assumido a Presidência o civil Pedro Aleixo. No entanto, o poder foi compartilhado entre as três forças militares e de 31 de agosto a 30 de outubro de 1969 uma Junta Militar governou o Brasil até a posse do general Emílio Garrastazu Médici, cujo mandato, de 30 de outubro de 1969 a 15 de março de 1974, marcou o período de maior repressão política durante a Ditadura Militar. Ao mesmo tempo, de 1967 a 1974, especialmente no momento do I Plano de Desenvolvimento Nacional (PND), ocorreu o “milagre econômico” — e se hoje identificamos os limites desse modelo econômico, no final da década de 1960 o progresso parecia palpável.

Você me segue, tenho certeza.

Esse brevíssimo apanhado histórico, e não apesar mas precisamente em função de sua ligeireza, nos obriga a questionar a afirmação de Marighella.

Mais uma vez: “A crise crônica da estrutura que caracteriza a situação brasileira (…)”.

Ora, a avaliação de Marighella era contraintuitiva, pois, muito pelo contrário, em 1969 o aparato militar que sustentava o regime encontrava-se perfeitamente estruturado. Aliás, o que se comprova pelo êxito da repressão aos diversos grupos de luta armada, virtualmente eliminados durante a presidência do general Médici.

Nesse caso, é preciso também ler o Minimanual contraintuitivamente.

Vamos?        

Redes e sistema nervoso
A seção Como vive e se mantém o guerrilheiro urbano fornece uma pista. Eis a passagem decisiva:

E ao expropriar os principais inimigos do povo, a revolução brasileira procura golpeá-los nos seus centros vitais. Daí porque ataca de preferência e de maneira sistemática a rede bancária. Quer dizer, desfecha seus golpes mais profundos no sistema nervoso do capitalismo. (p. 6, grifos meus)

Palavra puxa palavra.

Ver com olhos livres: centros vitais, rede, sistema nervoso: o vocabulário é cirúrgico e permite reconsiderar a avaliação de Marighella sobre a circunstância brasileira no final da década de 1960. Isto é, não haveria necessariamente um paradoxo na identificação de uma crise crônica num estado fortemente militarizado, pois, pelo avesso, a militarização bem poderia ser um recurso para controlar ou mascarar precisamente a crise crônica. Contudo, é preciso reconhecer que os seus efeitos demoraram anos para se manifestar. De fato, a alta do preço do barril do petróleo, decretado pela OPEP em 1973, conduziu ao colapso do modelo econômico adotado durante a Ditadura Militar, revelando seus limites e deixando clara sua orientação: a concentração de renda e o aumento da desigualdade social. Marighella contudo não teve tempo para testemunhar esse colapso.

Voltemos à questão da rede.

Na seção Greves e interrupções de trabalho, ainda que indiretamente, Marighella aprofundou o conceito:

Uma greve tem sucesso quando é organizada através da ação de pequenos grupos, tomando-se o cuidado de prepará-la em sigilo e na maior clandestinidade (p. 32, grifos meus).

A rede imaginada por Carlos Marighella dependia tanto do anonimato de seus membros quanto do caráter fragmentário de sua organização. Ou seja, tal rede implica uma radical horizontalidade, cuja radicalidade desautoriza o estabelecimento de hierarquias e simplesmente elimina a submissão a centros de comando. Nesse sentido, o anonimato é um aspecto nem sempre valorizado nas interpretações do Minimanual.

Na seção Assaltos o fator surpresa, que já discutimos em colunas anteriores, se revela um expediente que auxilia o anonimato:

E o ideal é que todos os assaltos fossem à noite, quando as condições para a surpresa são mais favoráveis e a escuridão facilita a fuga e o não reconhecimento do pessoal que opera (p. 25, grifos meus).

Sem dúvida, como também assinalamos nos últimos meses, o cuidado com o não reconhecimento e o favorecimento da ação de pequenos grupos respondiam a uma questão elementar de segurança. Afinal, dada a brutal assimetria de forças entre os aparelhos do estado e o núcleo guerrilheiro, era imperioso o esforço para manter a organização revolucionária, por assim dizer, “invisível”.

(Mas não se esqueça que precisamente essa invisibilidade nunca foi alcançada pelos grupos de luta armada, aí incluída a ALN.)

Desrespeitar esse princípio colocaria em risco nada menos do que o projeto da revolução brasileira. Na seção Os sete pecados do guerrilheiro urbano, Marighella chegou ao ponto de considerar o descuido com o anonimato um autêntico pecado. O trecho é eloquente:

(…) O segundo pecado do guerrilheiro urbano é vangloriar-se das ações que realiza e alardeá-las aos quatro ventos.

O terceiro pecado do guerrilheiro urbano é envaidecer-se.

O guerrilheiro urbano que padece desse pecado pretende resolver os problemas da revolução desencadeando ações na cidade, mas sem se preocupar com o lançamento e a sobrevivência da guerrilha na área rural.

(…)

O quarto pecado do guerrilheiro urbano é exagerar suas forças e querer fazer coisas para as quais não tem condições e não está à altura por não possuir uma infraestrutura adequada (p. 46, grifos meus.)

Todos esses tropeços podem ser traduzidos numa palavra: ostentação (das próprias forças), ou seja, o oposto da “invisibilidade”. E nem precisamos recordar os demais equívocos, pois o quarto pecado elencado por Marighella continha nada menos do que o anúncio de sua morte, ocorrida somente cinco meses após a escrita do Minimanual.

Pois, estrutura sem centro, a rede imaginada por Marighella seria invisível ou deixaria de existir.

Estrutura sem centro? É isso mesmo? — você se pergunta.

Sim: é exatamente o que proporei na próxima coluna.

[1] Carlos Marighella. Minimanual do guerrilheiro urbano, p. 2, grifo meu. Nas próximas ocorrências, mencionarei apenas o número da página citada. Alterei ligeiramente a pontuação do original para efeito de clareza.

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

Rascunho