Jornalismo cultural: promessas e impasses (final)

Os empecilhos enfrentados pelo jornalismo cultural no cenário contemporâneo
O jornalista Mário Faustino foi editor da página de poesia do “Suplemento Dominical do Jornal do Brasil”
01/08/2013

2013: um ano-encruzilhada?
Nas duas últimas colunas, procurei analisar o jornalismo cultural contemporâneo a partir de uma premissa explicitada no começo da série: o momento atual possui uma potência inédita, ainda não desenvolvida plenamente porque, presos a conceitos ultrapassados e a práticas endogâmicas de vida literária, seguimos achando feio o que não é espelho. Além disso, munidos com lentes míopes, mistificamos o passado recente, confundindo reconstrução séria de contextos discursivos diversos com a simples projeção dos nossos próprios pressupostos.

Como estratégia contrária à melancolia chique, decidi analisar suplementos mensais e cadernos semanais de cultura e literatura, a fim de demonstrar que as eternas ladainhas acerca do colapso do jornalismo cultural precisam ser substituídas por avaliações concretas, isto é, exames bem fundamentados de estudos de caso. Acredito que o leitor terá reconhecido a fecundidade dos exemplos que trouxe à baila.

Contudo, se identifiquei instâncias promissoras, não cheguei a aprofundar a necessária discussão acerca dos reais impasses que também definem o momento presente — e devo ser o primeiro a reconhecê-lo.

Hora, portanto, de tratar dos óbices enfrentados pelo jornalismo cultural no cenário contemporâneo. E, como nos próximos números estarei lidando com a crítica literária exercida na internet através de blogs e de vlogs, limito-me a discutir a extinção do caderno Sabático de O Estado de S. Paulo, buscando compreender o fato no âmbito de fenômenos mais amplos que afetam a imprensa como um todo.

Aos sábados, pela manhã
Editado com brilho e rigor por Rinaldo Gama, o Sabático conquistou rapidamente o reconhecimento do meio literário, graças a uma estratégia de edição muito bem-sucedida. De um lado, a mescla de resenhas acerca dos últimos lançamentos — traço indefectível do jornalismo cultural em qualquer latitude. De outro, a publicação de ensaios, às vezes de página inteira, sobre temas que não necessariamente lidavam com o calor da hora. Por fim, o espaço dedicado a reportagens assegurava o equilíbrio indispensável com a vocação propriamente jornalística.

Portanto, do ponto de vista editorial, o Sabático sempre se manteve à altura da melhor tradição da imprensa cultural. Aliás, a recente publicação do livro de Silviano Santiago, Aos sábados, pela manhã, esclarece o muito que se perdeu com o desaparecimento do caderno.

Organizado com agudeza por Frederico Coelho, o livro reúne setenta e um textos. Sua divisão em três seções — “Elogio da literatura”; “Além do campo visual”; “Uma revoada de vaga-lumes” — ajuda a esclarecer a relevância dos artigos, a par da erudição e do autêntico cosmopolitismo de seu autor.

Os dois artigos que abrem o volume, analisando o fenômeno Roberto Bolaño, já definem o traço dominante da coluna: notável acuidade crítica e atualização criteriosa com os eventos literários mais importantes das últimas décadas. Isso para não mencionar a capacidade de tornar coetâneo o tratamento das obras de Marcel Proust e Jean Genet, entre tantos outros autores. Silviano discute idéias complexas, como os conceitos de Oliver Grau sobre a leitura na sociedade de informação; apresenta a relação inesperada e iluminadora proposta por Susan Buck-Morss entre Hegel e a Revolução Haitiana; reflete criticamente sobre o modelo da formação no pensamento brasileiro.

E há muito mais nessa coletânea, incontornável para o entendimento da imprensa cultural hoje. Destaque-se, pois, a avaliação precisa do organizador:

O leitor dessas colunas, publicadas ao longo dos quatro últimos anos (…) terminará seu trajeto com a certeza de que, no cenário visto por muitos como apocalíptico no pensamento crítico brasileiro, ainda há espaço para aqueles que apostam na cumplicidade do crítico com seus objetos de estudo e, principalmente, com seu leitor.

Porém, devemos equacionar essa confiança com o desaparecimento do Sabático.

Não é uma conta que se fecha com facilidade.

Proponho um breve desvio para melhor tratar do assunto.

1956: um ano e seus impasses
Em 1956 Fernando Sabino lançou sua obra-prima, O encontro marcado. Numa outra ocasião, tentarei mostrar como a escrita do romance implica um diálogo subterrâneo com a correspondência do autor com Mário de Andrade. Destaco, agora, um tema que atravessa a composição, numa espécie de baixo contínuo que cadencia a angústia do protagonista, Eduardo Marciano.

Às voltas com o projeto de um grande romance que não conseguia sequer começar, o protagonista buscou uma válvula de escape: “Eduardo fazia planos literários — um livro de ensaios, por que não? Faltava um crítico a sua geração, não era isso mesmo?”. Num primeiro momento, a alternativa se mostrou acertada: “continuava a escrever artigos semanais, seu nome ia-se tornando conhecido”.

Contudo, o futuro escritor precisou enfrentar o impasse que o paralisava. Após publicar inúmeros artigos sobre a “técnica do romance”, pensou em enfeixá-los num livro teórico. A pergunta desconfiada de um amigo fez a iniciativa naufragar: “Por que você em vez de ficar escrevendo sobre romance, não escreve logo um romance?”.

De outro lado, muito em breve, a própria opção converteu-se numa quimera, e por um motivo repetido hoje em dia como se fosse um dado inédito: “Já não publicava mais nada — o jornal cortara seus artigos semanais por falta de espaço”.

Portanto, pelo menos para Eduardo Marciano, o ano de 1956 se assemelhou a uma interminável corrida de obstáculos.

(Mais ou menos como 2013 para os adeptos da melancolia chique.)

1956: um ano e suas realizações (inesperadas)
Chega a ser divertido recordar que, nesse mesmo ano, Guimarães Rosa lançou Grande sertão: veredas e Corpo de baile. Ademais, apareceram dois suplementos fundamentais: o Suplemento Dominical,do Jornal do Brasil (SDJB), e o Suplemento Literário, de o Estado de S. Paulo.

Convido o leitor a redescobrir os artigos que Mário Faustino escreveu para a grande imprensa, mais precisamente para o revolucionário Suplemento Dominical do Jornal do Brasil (SDJB). Lançado em 3 de junho de 1956, e até sua extinção em 23 de dezembro 1961, o SDJB marcou época tanto pela experimentação gráfica quanto pela ousadia editorial. Criado pelo poeta Reynaldo Jardim, teve como tarefa primeira dirigir-se ao universo feminino; daí, em seus números iniciais, era comum encontrar, na mesma página, receitas culinárias, poemas e crônicas.

(Aliás, há um antecedente ilustre: Machado de Assis publicou alguns de seus romances e muitos de seus contos em revistas também voltadas prioritariamente para o público feminino, como, por exemplo, a Estação e o Jornal das Famílias.)

Porém, Reynaldo Jardim impôs uma correção de rumos, convidando Mário Faustino para editar a página de poesia, além de contar com a colaboração freqüente de Ferreira Gullar, Haroldo e Augusto de Campos, José Lino Grünewald, entre outros. A diagramação inovadora de Amilcar de Castro também foi fundamental para o sucesso do SDJB, ainda hoje lembrado como um dos momentos mais altos do jornalismo cultural brasileiro.

O esforço de Mário Faustino mantém uma atualidade que deve ser resgatada para a renovação do jornalismo cultural. No SDJB, de 23 de setembro de 1956 a 11 de janeiro de 1959, ele publicou uma página denominada “Poesia-Experiência”. Sem alardes, o jovem poeta-crítico trouxe para a linguagem do periódico as propostas teóricas e as inovações poéticas da época, inaugurando uma página que primava pelo rigor e pela clareza.

No mesmo ano, veio à luz outra experiência ímpar: o Suplemento Literário (SL) de O Estado de S. Paulo, que circulou de 6 de outubro de 1956 a 22 de dezembro de 1974.

O projeto do SL foi apresentado à direção de O Estado de S. Paulo por Antonio Candido, e seu primeiro editor foi Décio de Almeida Prado. Na formulação do programa do suplemento, Candido teve o cuidado de ressaltar a atitude que tenho defendido através do conceito de esquizofrenia produtiva: “O suplemento, que aparecerá aos sábados, pretende conciliar as exigências de informação jornalística e as de bom nível cultural (…). Assim, serão atendidos os interesses tanto do leitor comum quanto do leitor culto, devendose evitar que o Suplemento se dirija exclusivamente a um ou outro”.

Ressalte-se o caráter abrangente da iniciativa, que deveria contemplar o common reader, na definição de Virginia Woolf, e, ao mesmo tempo, deveria atender ao leitor com um nível de informação já amadurecido. E por que não pensar num terceiro tipo de leitor, preocupado com as lições dos cursos universitários? Em outras palavras, o SL pretendia fornecer uma ponte entre audiências diversas, propondo, assim, um modelo de “intervenção na cultura e análise de temas artísticos e literários”.

Tal orientação ajudou a criar uma nova consciência em relação à linguagem por parte de colaboradores oriundos da cátedra; afinal, tratavase tanto de informar quanto de formar o público leitor.

Destaque-se, sobretudo, o ponto comum entre o SDJB e o SL; aliás, ponto decisivo para nosso próprio futuro: eles não surgiram como conseqüência lógica de um projeto editorial específico, porém como fruto de uma decisão corajosa da direção dos dois jornais.

2013: um ano e seus futuros
Retomo o caso do Sabático.

Seria um grave equívoco considerar que seu encerramento diz respeito somente a O Estado de S. Paulo. Pelo contrário, ele interessa a autores, críticos, editores, livreiros. E, claro, aos editores dos cadernos culturais que ainda se mantêm em atividade!

Enfrentemos a real dimensão do problema: a publicidade impressa importa cada vez menos para a movimentação do mercado literário. As editoras anunciam ativamente através de seus sites, assim como se beneficiam de um relacionamento novo e produtivo com blogueiros, que se multiplicam com grande rapidez e vitalidade. Em alguma medida, a disseminação de festivais em todo o país realiza um trabalho de divulgação de autores e títulos que, num passado recente, dependia consideravelmente dos cadernos e suplementos culturais e literários.

Ora, a forma de legitimação tradicional do jornalismo cultural tende a esgotar-se rapidamente, se é que já não pertence de todo ao ontem da vida literária.

Portanto, a preservação dos suplementos exige um ato deliberado de vontade política: tal atitude exigirá um pacto social inédito no universo do livro.

Editoras devem anunciar seus livros, ainda que, de um ponto de vista estritamente financeiro, a iniciativa não seja rentável. Leitores devem aceitar um aumento relativo do preço do jornal no dia de publicação do suplemento que eles decidirem apoiar. Festivais literários devem divulgar sua programação nos jornais impressos, sem se preocupar com resultados concretos. As grandes cadeias de livrarias devem estabelecer parcerias com suplementos culturais, a fim de apoiar a formação de futuras gerações de leitores.

Em contrapartida, os jornais devem assumir o compromisso de preservar o espaço da cultura e da literatura em suas editorias próprias.Outra opção: os jornais podem oferecer assinaturas apenas de seus suplementos e não de todo o final de semana.

Imaginar soluções criativas para essa nova circunstância: eis a tarefa mais urgente.

Muitos dirão que tal pacto não passa de uma proposta utópica. Sem dúvida. Mas é por isso mesmo que podemos torná-la concreta.

Ou sejamos coerentes e deixemos de perder tempo com a literatura.

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

Rascunho