As palavras e os conceitos bem construídos sempre me motivaram. Talvez porque nunca fui avesso a realizar, tecer algo a partir das leituras do mundo. Também não me assustei com as dificuldades nesses longos anos, e o fazer acontecer para mim sempre foi algo vital, coletivo, necessário, incontido. Pensava nisso na volta para casa após desfrutar do lançamento do segundo livro da trilogia Medos desacontecidos, dos incríveis Alessandra Roscoe e Odilon Moraes, texto e ilustrações lindos e unos intitulados Saudade (Gaivota, 2025). Como em toda festa das escritas e leituras, saí leve e feliz por encontrar amigos/as e por conhecer mais uma livraria independente, a Pé de Livro, no bairro de Pompeia em São Paulo. Mas os “nãos” e seus enfrentamentos, presentes no livro de Alessandra e Odilon, saíram comigo e se instalaram nessa leitura compartilhada.
Não sem motivos. Desde o dia anterior, estudei os resultados da necessária pesquisa referente a 2024 do Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf), realizado pela Ação Educativa/Conhecimento Cultural, sob a firme orientação da pesquisadora Ana Lima e apoio da Fundação Itaú, Fundação Roberto Marinho, Instituto Unibanco, Unesco e Unicef (analfabetismofuncional.org.br).
Mais uma vez, o Inaf apresenta dados repletos de desacontecimentos, isto é, demonstra o secular “não fazer” do Brasil que recusa direitos fundamentais. O resultado apontando que mantemos há 23 anos, desde o primeiro Inaf, a porcentagem média de apenas 11% de brasileiros que alcançaram um nível de alfabetização consolidada ou proficiente é um não fazer qualificado. Após cinco séculos como país, é uma derrota civilizatória inconteste.
Prefiro dizer em pessoas o que são porcentagens estatísticas. O IBGE nos informa que em 2024, data da realização do Inaf, éramos 212,6 milhões de brasileiros/as, portanto, apenas 21,2 milhões de pessoas têm condições plenas de ler e escrever textos complexos, interpretá-los com propriedade, refletir e recriar sobre eles forjando suas próprias ideias a partir de uma análise crítica e avessa às desinformações e conhecimentos infundados. Têm, igualmente, habilidades matemáticas e se inserem nas competências tecnológicas e virtuais. Para emprestar um bom conceito dos nossos amigos portugueses, poderíamos dizer que isto se chama literacia, ou seja, a capacidade de usar as competências de leitura, escrita e cálculo para processar informação escrita na vida cotidiana e na complexidade do viver. É certo que leitura transcende à palavra escrita, é “interação com o mundo, enquanto descoberta e enquanto prazer”, como ensina Eliana Yunes, mas para o trato do alfabetismo brasileiro, nos limites deste artigo, fiquemos com o conceito do Inaf que qualifica os nossos 11% como leitores proficientes ou com alfabetização consolidada.
Essa proficiência de 11% nos traz muitas revelações e o próprio estudo do Inaf já aponta várias delas ao desdobrar esse número e demonstrar a segregação racial, de gênero e territorial que estão embutidas tanto na positividade dos proficientes quanto na negatividade dos outros 89% da população que sofrem dos vários níveis do alfabetismo/analfabetismo.
E esses níveis são aterradores porque aprofundam o tanto que o país e suas elites seculares deixaram de fazer para superar os abismos criados, ceifando a nossa chance de ser um país mais justo, democrático, equânime e com condições de competir em melhores condições no jogo global que hoje é irreversível. Convido-os a visitar a pesquisa, mas comento aqui alguns aspectos gritantes.
A começar pelo nível persistente de analfabetos que, apesar dos progressos alcançados, ainda atinge 7% da população, 15 milhões de brasileiros/as. Imaginem-se nesse ano de 2025, onde discutimos IA e suas artimanhas, ser uma pessoa que sequer consegue ler frases completas. A crueldade persiste para os alfabetizados classificados como “rudimentar”, 22% ou 47 milhões de pessoas. Esse grupo, segundo o Inaf, apesar de realizarem operações mais simples do dia a dia, “não conseguem realizar tarefas do cotidiano que envolvem textos um pouco mais longos e complexos, ou que exijam alguma operação matemática mais elaborada”, ou seja, estão também excluídos do século 21 onde até para exercer direitos fundamentais como a saúde, exige-se habilidades complexas.
Os outros dois blocos que antecedem na hierarquia os proficientes, são os alfabetizados em nível elementar e intermediário. Os de nível elementar são o maior contingente de pessoas, 76 milhões ou 36% da população. Os intermediários somam o segundo grupo de 53 milhões ou 25%. Juntos somam 129 milhões de brasileiros e constituem um grupo importante porque, em níveis diferentes de percepção, avançam no trato dos dados, palavras e números, comparando-os, refletindo sobre eles e realizando algumas inferências. Pelo número e pelo grau alcançado são um grupo estratégico para realizar uma necessária virada para fazer acontecer um país de leitores/as proficientes.
A questão, como todo problema de política pública, é fazer acontecer e, para isso, é preciso boas práticas de governança na educação, na cultura e nas políticas de inclusão. Há resultados sintomáticos na pesquisa que dão boas pistas para os números negativos e para o que é preciso fazer.
A pesquisa cita os malefícios da pandemia como uma interferência que manteve os baixos números, mas apesar de eu reconhecer sua influência pontual, não foi ela que interrompeu o movimento de queda dos percentuais de analfabetos funcionais que vinha em declínio desde 2002 até 2009 — de 39%, em 2002, para 27%, em 2009. A partir de então se manteve estável em torno dos 27%. Anotada essa observação, o Inaf aponta que houve um aumento, a partir de 2018, da porcentagem de estudantes universitários classificados como analfabetos funcionais (12%) e alfabetizados elementares (27%), sendo que 61% apenas podem ser considerados como proficientes. Essa porcentagem de 61% era de 71% em 2018, uma queda de 10 pontos percentuais em relação a 2024.
O que une essas duas observações — estancamento da melhora e a queda do nível de alfabetização no ensino superior? Se olharmos a história, apesar de desacertos conhecidos, é inegável que a educação no Brasil teve uma orientação e gerenciamento mais qualificado a partir de 1995 nos mandatos de Fernando Henrique Cardoso, com a continuidade em nível ainda mais positiva nos dois primeiros mandatos de Lula, principalmente no ensino universitário. De 2002 a 2010 houve ainda a expansão de conceitos e programas no MinC, onde a intersecção Cultura e Educação começaram a tomar corpo, estendendo a questão do letramento à outra dimensão para além da escola.
Tivemos pelo menos 15 anos contínuos de políticas públicas com melhor direcionamento e resultados que caminhavam para aspirações próprias a um Estado de bem-estar e inclusão social. O fim desse ciclo é conhecido e desde 2011 o Brasil se vê em processos de pequenos avanços e grandes recuos nos direitos sociais, vivenciando o ápice desse quadro entre 2016 e 2022. Não há como dissociar o declínio das políticas includentes com o estancamento da melhoria dos índices de alfabetismo ou sua piora em alguns setores e períodos, movimento também analisado na pesquisa Retratos da Leitura no Brasil.
Para mudar esse quadro e fazer acontecer, entre tantas iniciativas necessárias, retorno às livrarias Pé de Livro, da Tarde, Martins Fontes, Mandarina, Miúda, entre tantas e tão necessárias. Livrarias, bibliotecas vivas, escolas acolhedoras e centros culturais comunitários são espaços de convivência, compartilhamento, crescimento humano e social onde as literaturas e as artes fazem parte da formação integral dos seres humanos. Políticas públicas e sociedade organizada podem realizar esse movimento virtuoso agregador e inclusivo, principalmente na superação do analfabetismo e por um país leitor. Superar o fracasso educacional, fruto de séculos de política regressiva, é tarefa democrática e civilizatória em que o caminho passa pela unidade cultura/educação. Mas este é um terreno que não se ganha sem união e sem luta. Estamos dispostos?