Um tantinho

Escrever na pandemia só cria um alívio instantâneo, no máximo uma sensação precária de melhora psicológica, mas não muda os problemas que enfrentamos
Ilustração: Thiago Thomé Marques
01/06/2021

Outro dia me perguntaram se está difícil escrever durante a pandemia. Eu disse instintivamente que sim — está mais difícil do que sempre e argumentei, sem refletir, que aos escritores brasileiros estão faltando palavras para nomear a combinação de crise sanitária com — que palavra usar: decadência, degradação, apodrecimento? nenhuma é suficientemente própria — oxidação política e social. Testemunhar hora a hora o esvaziamento da carga semântica justa e histórica das palavras tem praticamente impedido os escritores de fazer ressoar sua voz.

Mas, ao menos para mim, existe um outro aspecto que dificulta ainda mais a escrita (e isso inclui até mesmo essa coluna): o fato de que escrever, e mesmo conseguir nomear alguns fenômenos adequada e poeticamente, só cria um alívio instantâneo, no máximo uma sensação precária de melhora psicológica, mas não muda em nada os problemas graves e coletivos que enfrentamos. Antes, ao contrário, como formula minha paranoia autodestrutiva, substitui gestos mais práticos e efetivos, como sair às ruas e posicionar-se de forma mais ativa.

O que fazer então? Deixar de escrever ou escrever mesmo assim?

Opto, também sem pensar muito, pela segunda alternativa. Escrevo. Talvez o que me faça continuar seja justamente incorporar as dificuldades na própria escrita, permitir que elas dificultem explicitamente o fluxo do raciocínio, que elas enfeiem textos que, neste momento, seriam paradoxais se muito bonitos. E, por outro lado, ao prosseguir com as anotações de um breve diário que publiquei durante cerca de 200 dias em minhas redes, admitir que sim, alguns textos, mesmo se intencionalmente atropelados, eram considerados belos pelo público. Como receber elogios, como acolher a beleza em meio ao horror? De que ela nos serve ou será que serve justamente por não servir a nada?

Confesso que não sei responder e caminho entre destroços de lógica, de conceitos e de certezas perdidas. Talvez escreva somente para me alegrar um pouco e mais alguns, o que é pouco, mas também muito.

Acontece que a arte de nomear, para os escritores, é um trabalho muito sério, o mais sério de todos. Nosso ofício é encontrar o nome exato para aquilo que já tem nome, mas cujo significado se perdeu; para aquilo cujo nome se transformou em mais uma mercadoria consumível (eu te amo e afins); para aquilo que, de tão fundo ou belo ou impactante, é difícil de nomear e, finalmente, para aquilo que ainda não é nomeável. O maior exemplo, sem dúvida, de uma escrita que procurou dar nome ao inominável é, justamente, o livro O inominável, de Samuel Beckett, que, com seus restos de palavras e seus restos de estrutura romanesca, nos fez “ver” e “sentir” as ruínas da segunda guerra mundial e da guerra entre colaboracionistas e a resistência francesa. Afinal, não fazia o menor sentido, naquele cenário, articular tramas cronológicas e lineares, quando esses atributos tinham sido corroídos pela ação humana.

Leio Julián Fuks, Tatiana Salem Levy, Allan da Rosa, Paulo Scott, Giovanna Madalosso e outros, que tentam, cada um a seu modo, exercer o papel de Adão de nossa crise, nomeando nosso turno do inominável. E me consolo com eles, me inspiro neles, concordo ou discordo e, quem sabe, me sinta um pouco mais preparada para continuar, apesar do desejo de desistir.

O que fazer? Encontrar 200 sinônimos para “besta”? Articular inteligentemente pensamentos e metáforas, para buscar representar aquilo de que nossa psique não parece dar conta? Brincar com o absurdo, o kafkiano, com as oscilações entre realismo e delírio, entre o que já se conhece e o incognoscível, para com isso dar alguma forma ao caos informe em que estamos metidos? Faço tudo isso, alternadamente. Escrevo roubando a sintaxe de seus padrões, invento palavras, combino o real e o irreal, o grave e o banal, o grotesco e o sublime. O mito do Adão nomeador mostra um ser que, com o ato de nomear exatamente, para que palavra e coisa coincidissem sem arbitrariedade alguma, mantinha a harmonia perene do paraíso. Cada ser, quando presenteado com um nome por Adão, passava a pertencer àquela utopia ante-babélica, em que tudo se comunicava com tudo, em beleza e paz.

Como escritora num mundo já milenarmente dividido e pós-babélico, em que nada coincide com nada e em que a comunicação é tudo menos harmoniosa, talvez nomear com justeza e justiça possa auxiliar no combate ao desentendimento cada vez mais crescente. Possa fazer ver minimamente (entrever, ver com olhos semicerrados) o invisível e entrescutar o inaudível: tanto aquele que não suportamos ver e ouvir como aquele que se oculta de nós.

Eu sei, é pouco. Tão pouco que dá vontade de desistir. Mas sigo, seguimos nomeando. Por teimosia, alguma pouca fé em nossas palavras, falta de algo melhor e por vocação. Não muda muito, mas desloca um tantinho.

Noemi Jaffe

É escritora, doutora em literatura brasileira pela USP e coordenadora do Espaço Cultural Literário Escrevedeira. Autora de O livro dos começos, Írisz: as orquídeas e O que ela sussurra, entre outros

Rascunho