Sem querer, querendo

Incorporar o imprevisto no processo de escrita pode trazer às histórias surpresas e caminhos não imaginados que criam novas camadas ao enredo
Ilustração: Mariana Tavares
01/04/2022

Há tempos venho prestando atenção — paradoxalmente – à desatenção, ou, para dizer melhor, à distração e seu valor para a literatura. Fico anotando quantas vezes, nas obras que admiro, aparecem expressões como: de repente, sem querer, sem propósito, de súbito e suas variantes inumeráveis e vejo como essas expressões antecedem alguns dos eventos mais importantes e, claro, inesperados das narrativas. No mínimo os mais reveladores, já que “revelação” é, quase sempre, algo que acontece inesperadamente.

Leio isso aos punhados em Guimarães Rosa, por exemplo, abrindo aleatoriamente qualquer livro seu (e a aleatoriedade é mais um índice dessa desatenção atenta de que quero falar): num susto, foi que num despropósito, de supetão, de espanto, num descuido, num senão, sob um súbito, no vão entre duas estórias, para mencionar alguns poucos sinais de como o repente é determinante em suas narrativas. E em Clarice Lispector folheio as páginas com a mesma gratuidade, para encontrar: eis que de repente, vou escrever ao correr da mão, descobri isso tudo num instante, olhando distraída é que vi, e neste instante-já vejo tudo, descubro quando improviso, foi então que olhou e viu, um movimento a sobressaltou, num estilo tão diferente de Guimarães para dizer fenômenos semelhantes. E, finalmente, para ficar com os clássicos e cada um tão dissemelhante do outro, Machado de Assis: repentinamente, deixei-me estar, esquecido, foi senão quando, quando dei por mim, foi quando vi, quando deu por si já estava lá, foi com estupefação que compreendi.

Distração, aliás, significa, etimologicamente, fora dos trilhos ou dis-track. É como se a narrativa, que segue trilhos razoavelmente definidos de tempo, espaço e trama, saísse temporariamente dos ferros por onde ela corre e tomasse uma estrada vicinal, um desvio, um obstáculo. Como se, num improviso ou entrada do acaso, o que se viu nesse desvio fosse mais atraente e espantoso do que a estrada linear. Realmente, a aparição do imprevisto pode trazer às histórias — e à vida — surpresas reviravoltantes, caminhos não imaginados, combinações malucas que quase sempre complexificam e criam camadas novas de entendimento e de sequência do enredo.

Mas uma das questões mais interessantes que se abrem para quem está disposto a incorporar o imprevisto é: como receber os presentes da desatenção, estando atento para que eles apareçam? A distração parece só querer ofertar suas benesses para os sinceramente desatentos, aqueles que não se deixam subjugar pela tirania da atenção.

Mas trago boas notícias: é possível ser atentamente desatento ou, se quiserem desatentamente atento. Basta abrir mão, lentamente, de um regime exclusivamente instrumental ou funcional diante da escrita e ir gradualmente permitindo que as margens possam invadir as linhas, que as falhas sejam como aberturas para o que não se conhece nem sabe, que o acaso — campainha, café que cai sobre o papel, falta de luz, uma visita chata — ative possibilidades novas, que uma palavra o faça lembrar de outra, ou de alguma situação imprevista e que você se entregue a essa associação e deixe as palavras falarem, no lugar de você dizê-las o tempo todo. É preciso dançar na corda bamba, caminhar sobre a borda de um telhado, de vez em quando, para que o controle se abasteça de descontrole e ganhe a potência do impensado ou do pensamento que escapa à plena consciência.

O antropólogo inglês Tim Ingold, num texto iluminador, fala sobre diferentes formas de empreender uma caminhada flanante: o modo labirinto e o modo Dédalo. No modo labirinto, o caminhante sabe aonde quer chegar e, mesmo se perdido ou desorientado, busca encontrar uma saída, da mesma forma que Teseu ao se encontrar lançado às garras do Minotauro, finalmente achando a saída graças à arte de Ariadne. Já o caminhante do modo Dédalo não se incomoda muito em não saber onde fica a saída. Aproveita que está perdido para avistar caminhos desconhecidos, rotas inexploradas, coisas que vão surgindo no meio da flanação. É um caminhante que, além de se colocar como sujeito, também sabe reconhecer a importância de ser objeto do que aparece e ser surpreendido por isso.

Um escritor, de certa forma, é também um caminhante por estradas feitas de papel, cujos veículos são as palavras. Não duvido que cada um que se embrenha nessa floresta de caminhos inopinados, se surpreenda ao se abandonar à arte difícil de ser objeto das palavras e não mais seu sujeito manipulador. Ser objeto pode ser libertador: da perfeição, do controle, da funcionalidade. Abandonar-se ao que vem também pode ser uma forma de autonomia, por incrível que pareça.

De repente, do nada, sem querer, você pode ter a surpresa de, em vez de inventar, ser você também inventado.

Noemi Jaffe

É escritora, doutora em literatura brasileira pela USP e coordenadora do Espaço Cultural Literário Escrevedeira. Autora de O livro dos começos, Írisz: as orquídeas e O que ela sussurra, entre outros

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