Constrangimentos

A partir da experiência do ensino da escrita literária, a autora fala sobre “restrições” que costuma propor aos seus alunos, como forma de atingir o novo
Ilustração: Denny Chang
01/09/2021

Pensando nas propostas do grupo Oulipo, mas também nos mais de 30 anos de experiência com o ensino de escrita — em que a máxima da “tentativa e erro” se revelou como a melhor forma de aprendizado —, gosto muito de propor “restrições” aos meus alunos, assim como também gosto de trabalhar com elas em meus próprios textos.

Os franceses chamam de constraintes, ou espécies de regras que constringem, constrangem, restringem a escrita de ficção. Nesses quase sinônimos, o que ressalta é a raiz strain, que significa “apertar firmemente”; ou seja, as restrições têm a ver com a dificuldade de trânsito por uma passagem apertada, ou a dificuldade de expressar-se em função de alguma imposição externa. Seria como um tipo de jogo, com a diferença de que o objetivo não é ganhar no final, mas somente encontrar uma forma de contornar a dificuldade.

Nesse processo de buscar caminhos alternativos para lidar com um desafio autoimposto, o cérebro é como que forçado a seguir por lugares ainda não experimentados e o resultado, quase sempre, é um efeito inaugural das palavras, frases e ritmos, mesmo que por vezes de forma estranha. Mas mesmo o estranho (que, etimologicamente, significa “de fora”) é desejável, pois revela faces das nossas possibilidades expressivas que ainda não conhecíamos.

A tendência da linguagem, assim como de todas as outras competências mentais, é de acomodação. Sem saber, nós escritores reproduzimos formas, construções e estruturas, lugares-comuns alheios e próprios, cacoetes e vícios, que, aos poucos, perdem — tanto para o escritor como para o leitor — um dos efeitos mais importantes do texto literário: a sensação de inauguração. Como se estivéssemos escrevendo ou lendo algo pela primeira vez, surpreendidos pelo aspecto inusitado da formulação. É claro que, nem sempre, o resultado é do nosso agrado. De qualquer forma, o processo de deslocamento mental provocado pela solução inesperada é fundamental para que o autor reconheça lados inesperados de sua escrita.

A escrita é um ofício plástico, cujos caminhos se transformam diariamente, tanto por circunstâncias externas como internas, e uma das formas de ter acesso a essas mudanças constantes é a experimentação errática de nossa potencialidade. Quando falo “errática”, é claro, me refiro tanto ao desacerto como à errância, permitindo tanto que o acaso penetre o texto, provocando faltas e lapsos, como que o texto perambule, desviando, realizando digressões e associações. Isso tudo não significa que as restrições liberem o escritor para um relaxamento construtivo. Ao contrário, as restrições estabelecem regras que dificultam o trânsito livre das palavras.

Para não especular de forma exclusivamente abstrata, vamos a um exemplo. Digamos que as restrições impostas sejam, num texto sobre amor, não utilizar nenhuma vez algum termo relacionado a “amor” (amor, amante, querido, coração, beleza, lindo, etc.) e que, a cada dez palavras, haja algum termo associado a “ódio” (raiva, detestar, odiar, horror, repulsa, etc.). Por um lado, a ausência de expressões evidentemente amorosas vai obrigar o autor a expressar o sentimento sem recorrer a expressões consolidadas e, por outro, vai também fazer com que ele inclua o ódio também como possibilidade de linguagem do amor. Isso pode gerar frases como: “eu te odeio do avesso”, “você é meu parceiro diante do horror”, “tenho repulsa de tudo aquilo que você não tocou”, “que raiva de quem não te conhece”, “odeio quando te odeio” e tantas outras. Não preciso optar por nenhuma delas definitivamente e posso descartá-las todas. Isso não importa tanto. O mais importante é re-conhecer e estranhar minhas formas de dizer o amor, deslocar-me dos meus próprios processos de sentir e expressar esse sentimento, para desorganizar o que já sei e as palavras que já estou habituado a usar.

Como na dança, em que a coreografia e o espaço impõem limites ao dançarino ou como num jogo de futebol, em que o campo e as muitas regras impedem determinados movimentos, também na escrita as restrições potencializam os recursos, forçados a expressar mais com menos e a inventar novas habilidades diante das dificuldades. Se não posso colocar a mão na bola, preciso criar um drible; se o espaço é pequeno para muitas piruetas, preciso dar várias piruetas no mesmo lugar.

Milan Kundera fala sobre a “ética do novo” como sendo um dos mandamentos do escritor. Um texto ficcional, de acordo com ele, “deve” apresentar o novo ao leitor, que, ao ler, conhece novas perspectivas de pensar e dizer certos problemas. Não se trata, é claro, da novidade em nome da própria novidade, o que seria não mais do que um modismo gratuito. Trata-se de uma novidade lastreada e capaz de causar “desloucamentos” no leitor. O estranhamento em relação a algo ainda não vivido e lido desacomoda a leitura do interesse apenas pelo enredo e faz com que o leitor repense a linguagem não apenas como instrumento e ponte para as ideias, mas como o lugar privilegiado da expressão literária. As restrições não são, é claro, a única forma de atingir a novidade ou o efeito inaugural da expressão, mas sempre valem como forma de deslocar o hábito. E o hábito, como tudo o que tende à fixação, é um dos maiores inimigos da literatura.

Noemi Jaffe

É escritora, doutora em literatura brasileira pela USP e coordenadora do Espaço Cultural Literário Escrevedeira. Autora de O livro dos começos, Írisz: as orquídeas e O que ela sussurra, entre outros

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