Mediar a leitura: um recorte brasileiro

É imprescindível instigar abordagens ousadas de leitura, sempre estimulando os leitores a expressarem suas opiniões sobre os textos
Ilustração: Maíra Lacerda
01/06/2025

Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda

Desde o seu surgimento, os livros mostram-se como objetos que escapam ao pragmatismo cotidiano. Destinados a partilhar e preservar conhecimentos e experiências, possibilitam a comunicação através do tempo e espaço. Essa condição, todavia, implica muitas vezes a presença de um elemento cuja posição esteja a meio caminho entre o texto e quem o lê, a quem caberá a função de intermediar a leitura e até mesmo traduzir para o leitor o conteúdo do texto. Em Infância, Graciliano Ramos descreve esse exercício, durante um serão familiar. Ao ler a pedido do pai, mal e mal, um pequeno romance, ele o colocou ao alcance da compreensão do menino, organizando as sentenças em ordem direta, vertendo para linguagem de cozinha a parolagem literária. Fascinado com a história de aventuras, Graciliano, cuja alfabetização arrastava-se havia cerca de dois anos, em meio à inépcia pedagógica e a textos didáticos indecifráveis, empenhou-se para ler sozinho o restante do livro.

Os historiadores da leitura, especialmente Chartier e Hébrard, ressaltam a importância de uma comunidade leitora para que existam leitores. O que parece óbvio, na verdade, é exigência sine qua non do ato de ler, nas complexas operações por ele demandadas. Em momento de expansão da comunidade leitora, como aconteceu no Brasil, nos anos de 1990, a figura do mediador, normalmente a cargo de parentes, professoras ou colegas, sofreu uma diversificação e pessoas de profissões afinadas com a literatura, as bibliotecárias, por exemplo, passaram a se reconhecer como mediadoras. Em pouco tempo, no entanto, deu-se uma extensão de sentido e muita gente que não era leitora de literatura passou a fazer mediação de leitura em espaços variados.

Em face desse quadro, instituições compromissadas com o livro começaram a qualificar mediadores. O Programa Nacional de Incentivo à Leitura (Proler) da Fundação Biblioteca Nacional colaborou, por meio de cursos e encontros sistemáticos em grande parte do país, para a formação de leitores e de adequados mediadores. A Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil forneceu consultoria a alguns municípios, institutos e empresas, dentre elas a Ecofuturo, que alimentava um projeto de implantação de bibliotecas em várias partes do país na segunda década dos anos 2000. Por meio de cursos especializados, a competência leitora era preparada e enfatizada com o cuidado devido. Em algumas dessas experiências, eu, Maíra Lacerda, tive a oportunidade de atuar como formadora e pude acompanhar professores e bibliotecários, mas também coordenadores escolares, auxiliares administrativos, pais e estudantes de diferentes faixas etárias e em diferentes etapas do ensino, além de outras pessoas das comunidades atendidas, no percurso de pensar o espaço da biblioteca e o ato de leitura. Nesse contexto era muito comum os participantes se mostrarem pessoas com pouca prática de leitura, apesar de sempre reproduzirem falas a respeito da “importância da leitura”.

A opção por realizar em voz alta leituras de textos curtos mostrou-se um recurso metodológico eficaz. O prazer de entrar em contato com narrativas atraentes aliava-se à surpresa de ter alguém lendo para os participantes, todos adultos. O futuro mediador ocupava, assim, o lugar do leitor para quem leriam, mais tarde, vivenciando descobertas que ajudariam a construir esse lugar que almejavam, tais como o prazer de ouvir um texto, a possibilidade de construir ou de reconhecer sentidos e representações. Nessa prática de mão dupla, conceitos arcaicos, tais como a indicação de leitura dividida em gênero, idade, classes sociais, eram revistos; a centralização e controle do acesso aos bens culturais era posta em discussão, observada a necessidade de consciência e luta por um processo mais justo de irradiação dos bens provindos de regiões do país fora dos costumeiros eixos.

Esse exercício motivou muito os cursistas, seja por reconhecerem neles questões do seu cotidiano — como a expressão “boca da noite”, ainda utilizada por seus pais e avós, presente no conto de Cristiano Wapichana, e a história do Bumba meu boi bumbá, de Roger Mello — que a comunidade de Urbano Santos, Maranhão, dança todos os anos no festejo —, seja por apresentarem narrativas desconhecidas até então, mas que mobilizam questões importantes para os sujeitos — como o lugar do feminino, presente em Doze princesas dançarinas, dos irmãos Grimm, e que propiciou discussões oportunas, assim como a discussão de “superações”, após tentativas de se “encaixar” nos padrões da sociedade em Flicts, de Ziraldo.

Especialmente em relação à leitura do Bumba meu boi bumbá, a fala dos cursistas foi muito significativa: “Essa é uma história da gente, a cultura do nosso estado. O livro conta a história que a gente conta com a dança. A gente viu a história de outra forma”. Esse reconhecimento a partir do livro se mostrou extremamente potente e reverberou por todo o restante da formação, que, segundo uma das cursistas, “estava sendo uma experiência nova, pois nunca tivera uma aula tão dialogada e contextualizada, que estava mudando sua forma de pensar”. Tal relato atesta a importância efetiva do curso, pois não temos como falar em leitura sem diálogo, sem escutar o leitor. E se esses cursistas não se sentiam escutados, como poderiam promover a escuta enquanto mediadores de leitura? A partir da experiência de escutarem as histórias e participarem das leituras, compartilhando suas impressões e experiências, aprendem como replicar e como promover leituras, apropriando-se efetivamente da proposta.

A realização de leituras feitas para eles foi uma surpresa para todos, mostrando-se como uma experiência de acréscimo, em fruição e competência, proporcionando experiências de reconhecimento e indagação. A destacar ainda a alegria de um pequeno grupo de indígenas, moradores da cercania de Açailândia, Maranhão, também com o livro A boca da noite, ilustrado por Graça Lima, no qual reconheceram a propriedade da representação visual das ocas e da aldeia. Em um país que apresenta dimensões continentais e uma realidade multicultural como poucas nações, essa mínima epifania não é pouca coisa.

Vemos, nos dias que correm, demandas da sociedade civil nas quais se podem identificar vozes de minorias, de artistas, de associações, de pesquisadoras em um panorama que se manteve estável por muito tempo. Vemos a universidade ocupando-se da formação de mediadores, algumas editoras e instituições sustentando plataformas de encontros — presenciais ou virtuais — visando à sua capacitação. Sem desconsiderar a crescente influência digital no campo da leitura, no que concerne à produção e à divulgação de obras, não se pode esquecer, porém, que ainda é na escola e nos espaços físicos de leitura que grande parte da mediação de leitura acontece e nessa direção move-se nossa perspectiva.

A conversa é um poderoso instrumento de mediação, mas não basta. Estimular a leitora e o leitor a expressar sua visão, situar a obra e a autoria no contexto mais amplo possível, instigar abordagens ousadas de leitura são procedimentos básicos da mediação de qualidade. É vital, por outro lado, que se fale a partir do lugar em que está, sem perder a amplitude do universal. O mediador, considerado um guia de jornada, como destacamos em uma de nossas primeiras colunas, demanda qualificação, para que a leitura se efetive como experiência de deslocamento individual e social, visando refundar o país, com base assentada na justiça social e confiança em sua potência para atender os anseios democráticos de cidadãs e cidadãos.

Maíra Lacerda
Designer e ilustradora. Professora no Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF, com doutorado em Design pela PUC-Rio. Prêmio de tese pelo Museu da Casa Brasileira. Pesquisa os livros para crianças e jovens e a formação visual do leitor no laboratório LINC-Design.
Nilma Lacerda

Escritora, tradutora, professora, recebeu os prêmios Jabuti, Rio, Brasília de Literatura Infantojuvenil, entre outros. Trabalhou em várias universidades públicas, é colaboradora da UFF. Exerce a crítica de literatura para crianças e Jovens e mantém um Diário de navegação da palavra escrita na América Latina.

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