Mas se formam leitores? (nova velha questão)

A leitura é uma prática cultural e não se sustenta fora de uma rede de apoio e de mediação, sendo a vontade política o item capital para seu estabelecimento
Ilustração: Maíra Lacerda
04/11/2020

Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda

Após 15 anos de um projeto de formação de leitores, estruturado e funcionando da maneira mais adequada possível, uma amiga escritora manifesta a dúvida: “Não sei se formamos leitores. Creio que no máximo a gente dá oportunidade do contato com livros e leituras”. Expressão constantemente repetida e nem sempre em referência à atividade contínua, gradual e consequente, com foco na diversidade de gêneros e experiências, a formação de leitores é uma pauta constante nas políticas públicas de leitura.

Muito se fala e se propõe a esse respeito, sob o argumento da necessária condição de uma nação leitora, em todas as implicações que isso supõe. No entanto, várias atividades são reunidas, às vezes de forma indiscriminada, sob esse rótulo. Tais ações compreendem desde a contação de histórias a eventos de doação de livros para as bibliotecas públicas, da participação em bienais a práticas variadas de leitura.

Um dos principais itens para a efetivação desses projetos — os livros nas mãos de crianças, jovens e adultos, sendo partilhados e fruídos — depende de profissionais capazes de se situar entre aquele ou aquela que lê, ou deve ler, e o objeto a ser lido. A leitura é uma prática cultural, e não se sustenta fora de uma rede de apoio e de mediação, bem evidenciada por importante artigo de Jean Hébrard, historiador francês. E a vontade política é o item capital para seu estabelecimento.

Todavia, admitindo a vontade política da nação, refletiríamos sobre os pontos capazes de responder à amiga: as ações mais bem intencionadas e mais bem realizadas, capazes de superar as tantas dificuldades que se impõem, seriam capazes de formar leitores? Como definir a condição de ser leitor, leitora?

Não basta saber ler para exercer a condição de leitor, fruto de prática social e cultural. Pesquisadores, educadoras, profissionais e responsáveis diversos por ações de leitura ou gestão em espaços de leitura estabelecem, de forma consensual, que tal condição vincula-se à leitura de literatura, isto é, de obras que não tenham finalidade objetiva e pontual, como um livro didático, um manual de trânsito, jornais e revistas. Ao falar em leitor, a pressuposição é, portanto, a da pessoa que lê literatura, ou seja, poemas, romances, contos, ensaios, lendas, folhetins, quadrinhos, dentre outros gêneros. Sem desprezar o aspecto funcional da linguagem, quem lê exerce o contato com a arte, em provocação à prática da subjetividade. Quem lê literatura reflete, questiona, abre-se à transformação.

Tal é a espinha dorsal de O direito à literatura, texto indispensável de Antonio Candido. O autor observa que a literatura é um direito humano. A literatura humaniza, isto é, permite ao leitor a consciência de sua posição na escala da vida, a ser gerida pela razão e pela sensibilidade. Para o crítico, tanto a forma quanto o conteúdo do texto colaboram na estruturação da personalidade, oferecem meios de intervenção no real.

Ao término da leitura de Pai contra mãe, de Machado de Assis, o leitor se perguntará: por que o homem branco pôde guardar o próprio filho, enquanto a mulata (sic) perdeu o filho dela? A leitora acrescentará: que distinções são essas, com base no poder discricionário e na opressão do mais fraco? Para alcançar tais formulações, ambos realizam um trabalho de acompanhamento do discurso textual e visual do objeto-livro, um processo de produção de sentidos, pessoal e histórico, no qual as significações disponíveis estão em circulação, e costumam chegar por acúmulo de leituras e experiências.

O ato de ler é um ato de trabalho. Ler, em seu sentido pleno, não é festa nem ato didático. As retribuições usualmente apresentadas para quem pratica a leitura — adquirir conhecimento ou melhorar vocabulário — são consequências de um ato intelectual em si. Outras atividades intelectuais propiciam a obtenção dos benefícios citados: fazer palavras cruzadas, ler verbetes de enciclopédia, ler livros científicos, por exemplo. Mas a leitura literária, por meio do encadeamento narrativo ou do discurso elíptico da poesia, das falas marcadas do texto dramático ou da condensação do chiste, oferta uma recompensa abstrata, a ser alcançada apenas ao final do trajeto.

A dose de maturidade e de coragem para atravessar um terreno de aspecto desconhecido, de vista pouco a pouco desvelada, é significativa e não pede distinção de idade. A criança pequena que espera o desfecho de Chapeuzinho vermelho, o jovem que segue O corvo, de Poe, na pena de Manu Maltez, a mulher adulta que se emociona ao reler Amor, de Clarice Lispector, todos apresentam essas qualidades indispensáveis à leitura, silenciosa ou em voz alta, realizada por si ou por outrem, a quem se ouve.

Retomando a pergunta da escritora, formam-se leitores? Isto é, ensinamos às pessoas que ler é uma ação que alimenta a existência, auxilia a formar conceitos de respeito e solidariedade, a analisar os atos humanos e procurar modificá-los visando um bem comum? Evidenciamos para elas o prazer estético, muitas vezes bastante refinado, que a literatura pode proporcionar? Ou, com essa referência, estamos aludindo ao ato de sensibilizar sujeitos para o encontro com o livro e com a leitura, encorajando-os ao desbravar de páginas, a reter a impaciência, abandonar o gozo imediato de uma brincadeira leve, em troca de uma vivência que, de modo sensível, toque o seu íntimo, colabore para formar sua consciência?

Afeto, exemplo, continuidade são traços fundamentais do ato de formar leitores, e sem qualquer garantia — é importante frisar — que de todo nosso empenho aconteça, ao fim e ao cabo, um leitor. Prática cultural a ser sustentada em rede, sensibilizar pessoas de qualquer idade para a leitura costuma ser decorrência da ação orgânica de um leitor, uma leitora em exercício de fulgor, paixão ou convicção. Somos duas a assinar esta coluna, e não nos formamos leitoras da mesma forma.

Pertencentes a gerações diferentes, as experiências de vida também se fizeram em profissões diversas. Uma seguiu desde cedo o magistério e, por um pouco mais de 50 anos, ensinou língua e literatura nos diversos níveis de ensino, da educação infantil à pós-graduação; em determinado momento, o magistério desdobra-se na escrita literária e acadêmica. Outra começa pelo design, envolve-se com a produção de vídeos, passa à produção editorial e, em seguida, sem abandonar esse campo, acrescenta as experiências de sensibilização de pessoas para a leitura e o ofício de professora na área da comunicação visual.

Ninguém se forma leitor sozinho, ninguém lê sozinho todo o tempo. Leitor tem necessidade de trocar ideias e sentidos com outros leitores. As duas leitoras que aqui escrevem são mãe e filha, e ambas se formaram leitoras por iniciativa materna. Não é uma regra que assim seja, mas a clareza de um projeto feminino voltado à autonomia elegeu esse caminho uma primeira vez. A filha, que recebeu a leitura de literatura como um dom, tornou-se mãe e, por sua vez, ofereceu-o também à filha. Nesse segundo movimento, talvez contasse menos o projeto de autonomia da geração anterior e mais a perspectiva de poder mirar a vida de muitos ângulos diferentes, que a literatura propicia.

Este é o objetivo da coluna: sensibilizar pessoas para o delicado ofício de formar leitoras, leitores. Com foco em livros que crianças e jovens também podem ler, visamos oferecer melhor compreensão dessas obras em seu potencial de diferentes miradas e possibilidades significativas, abarcando nesse processo o verbal e o visual. A literatura: um caleidoscópio e os movimentos que o colocam para girar.

Maíra Lacerda
Designer e ilustradora. Professora no Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF, com doutorado em Design pela PUC-Rio. Prêmio de tese pelo Museu da Casa Brasileira. Pesquisa os livros para crianças e jovens e a formação visual do leitor no laboratório LINC-Design.
Nilma Lacerda

Escritora, tradutora, professora, recebeu os prêmios Jabuti, Rio, Brasília de Literatura Infantojuvenil, entre outros. Trabalhou em várias universidades públicas, é colaboradora da UFF. Exerce a crítica de literatura para crianças e Jovens e mantém um Diário de navegação da palavra escrita na América Latina.

Rascunho