Frontera: uma coleção

Obras da colombiana Babel Libros estão em consonância com a identidade vitalista da América Latina, com seu toque crítico, lírico e corajoso
Ilustração: Maíra Lacerda
02/08/2022

Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda

A América Latina, assim nomeada no século 19 por interesses estrangeiros, basicamente franceses, em busca de oposição à América anglo-saxônica, define-se pelos idiomas latinos — espanhol, português e francês — do processo colonizador, baseado na exploração, em vez da perspectiva de uma nação a construir, tal como foi pretendido ao Norte pelos emigrantes ingleses. No entanto, também aí, a tônica foi o genocídio, o apagamento das culturas nativas e a consideração da história a partir da chamada descoberta. A memória volta-se para os atos de ocupação do território, concedendo-se aos habitantes anteriores o rótulo de exóticos e inferiores. O percurso marcado pela opressão e despotismos variados, além do empenho deliberado para a fragmentação identitária, traduz-se bastante bem naquilo que Eduardo Galeano resume em O século do vento: “A América Latina é um arquipélago de pátrias bobas, organizadas para o desvínculo e treinadas para desamar-se”.

Galeano falou de situação visível ainda no século passado e que não terá se modificado de forma substancial no presente, embora tenham ocorrido e ocorram importantes movimentos de aproximação entre essas nações, com base no reconhecimento de um passado histórico e cultural comum. Na década de 1990 e nos primeiros anos do século 21, vimos acontecer ações que reverberaram em fértil troca sobre a identidade latino-americana. No campo específico de que falamos, os nomes de Silvia Castrillón, Elizabeth D’Angelo Serra e Emilia Gallego Alfonso responderam, na Colômbia, no Brasil e em Cuba, por encontros sobre a formação leitora da infância e da juventude e a produção literária concernente a essas faixas. A circulação de obras com destaque para vozes de problematização e resistência, conferindo maior visibilidade às tradições indígenas e africanas, foi uma das consequências desses encontros.

O “olhar oblíquo”, de que fala Ricardo Piglia, fomentará a consciência de um pensamento local, na criativa tensão com ensinamentos passados e matrizes estrangeiras. José Martí e Rafael Pombo, no século 19, Lobato e Cecília Meireles no século 20, juntam-se à argentina Graciela Montes na formação de um bloco crítico que fala do lugar da América Latina e para esta América. Montes, cuja obra começa a circular no final do século e continua vigorosa neste início do 21, localiza a arte no espaço de uma fronteira indômita, lugar de liberdade, em que o indivíduo não se encontra submetido ao eu intransigente e radical, nem à tirania de um pensamento alheio; nem sucumbir aos próprios delírios, nem alienar-se de si, sucumbindo ao desejo do outro, tal a função dessa zona.

Montes focaliza o papel da escola em alargar ou estreitar essa região, que responde diretamente pela maior ou menor capacidade de realizar com sucesso as travessias pessoais e a compreensão das circunstâncias sociais e históricas. Pródigos em reflexões, análises e troca de experiências, os encontros aludidos colaboraram para gerar e fortalecer ações editoriais voltadas a pautas latino-americanas.

Dentre tantos projetos sérios e bem embasados neste campo, destacaríamos a coleção Frontera, descortino exemplar da colombiana María Osorio, com publicações que visam alcançar leitores com experiência de leitura, em volumes sóbrios e formato que foge ao design habitual das obras consideradas juvenis. Nenhuma ilustração acompanha as temáticas complexas, em alta voltagem literária, na qual a problematização é o viés escolhido para o diálogo com as demandas críticas do jovem em sintonia com o contemporâneo, sem perda, porém, de uma perspectiva poética, vital ao humano.

Vislumbrar uma América Latina de diversidades que se reconhecem e se estreitam no abraçar de suas origens e questões não é exatamente um objetivo do projeto editorial, mas uma evidência de sua construção, patente nos volumes que incluem autorias de vários países: Colômbia, Argentina, Brasil — com significativo número de obras —, Chile, Suécia e Grécia, de onde vêm clássicos da luta contra ditaduras, aquelas que submetem todo um país, aquelas que submetem a infância.

A experiência do abandono infantil, fruto de condições sociais de extrema desigualdade, e as experiências radicais daí originadas são partilhadas em No comas renacuajos, de Francisco Montaña Ibañez, obra aguda e quase insuportável na exposição da miséria humana; a poesia e a muda consciência da infância em face da história, no viés familiar e nacional, representam-se com ousadia e sinceridade em Álbum familiar, de Sara Bertrand. A infância como assento do afeto, do medo e do recalque é o ponto-chave das obras de Helena Iriarte, que confere à memória delicado toque de intimidade, bem diverso dos apresentados por Rogério Pereira e Bartolomeu Campos de Queirós. En la oscuridad, mañana (Na escuridão, amanhã) e Rojo amargo (Vermelho amargo), o pano de fundo são os aprisionamentos de origem psíquica, exercidos na dimensão familiar por crueldade, opressão, preconceitos, sentimentos destrutivos. Em Pluma de ganso (Pena de ganso), de Nilma Lacerda, é uma questão de gênero que encerra a menina Aurora na condição de analfabeta e abre discussões sobre o destino feminino, tema recorrente na literatura contemporânea, e ao qual Marina Colasanti concede densidade e complexidade incomuns na obra Entre la espada y la rosa (Entre a espada e a rosa). Outros textos de Frontera apresentam essa questão, recontando a história a partir de relatos por tanto tempo sufocados, como em El mar no se desborda (O mar nunca transborda), de Ana Maria Machado, e Lengua madre, de María Teresa Andruetto, que confere à língua mãe o papel de recomposição da protagonista com a história pátria e com a história pessoal, marcadas por dolorosas rupturas.

Frontera é, portanto, uma coleção em consonância com a identidade vitalista desta América Latina, com seu toque carnavalizado, crítico, lírico e corajoso, em um mundo de ponta-cabeça e com permanente reinvenção de regras, a fim de enfrentarem-se os perigos inesperados do existir. Assim, em El día de la mudanza, de Pedro Badrán, os protagonistas movimentam-se no intrincado tabuleiro advindo da derrocada financeira do pai, enfrentando, junto com a mudança de casa, a mudança do valor que a família tem como peça no jogo social. Fragilidade, descarte, exposição aos males de que estavam anteriormente protegidos traduzem a situação de perplexidade generalizada: “Dizem que o pai de Samuel é um mafioso, embora eu ainda não saiba se esse é um título de nobreza ou uma censura”.

Sempre condenados a levantar um véu para enxergar além da superfície dos fatos, como faz o personagem Pedro, em La noche de las cosas, de Laura Escudero Tobler, nós, leitoras, leitores da América Latina realizamos a travessia pela história, valendo-nos da fronteira indômita, mas ignorando fronteiras entre os países ou entre as idades. Esse o visionarismo da editora de Babel Libros, com títulos que dão a conhecer parte da história de autoritarismo e opressão que caracteriza esses países, junto à luta e ao lirismo postos na base de um porvir sonhado como tempo justo e feliz.

Maíra Lacerda
Designer e ilustradora. Professora no Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF, com doutorado em Design pela PUC-Rio. Prêmio de tese pelo Museu da Casa Brasileira. Pesquisa os livros para crianças e jovens e a formação visual do leitor no laboratório LINC-Design.
Nilma Lacerda

Escritora, tradutora, professora, recebeu os prêmios Jabuti, Rio, Brasília de Literatura Infantojuvenil, entre outros. Trabalhou em várias universidades públicas, é colaboradora da UFF. Exerce a crítica de literatura para crianças e Jovens e mantém um Diário de navegação da palavra escrita na América Latina.

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