A lua e a rosa

As duas obras aqui propostas à leitura inserem-se no grande grupo dos livros sem idade, porque a literatura é uma experiência que demanda subjetividade
Ilustração: Odilon Moraes
01/05/2021

Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda

Caleidoscópio tem como eixo principal o fato de que literatura para crianças e jovens é literatura. Todavia, não perdemos de vista o fato de os livros destinados a essas idades serem objetos diferenciados, propiciando ao leitor o convívio com outras linguagens, na vanguarda das relações texto e imagem, segundo Peter Hunt. Tais condições, somadas a um significativo esforço editorial e autoral, podem colaborar para que obras-primas universais estejam ao alcance desse público. As adaptações não são um evento recente na história literária, mas estudos contemporâneos e ousadias variadas têm colaborado para um número cada vez mais pródigo de textos inicialmente pensados para um leitor adulto sendo fruídos de forma plena em outras idades. Fita verde no cabelo terá sido um marco na transposição de um texto de autor consagrado para adultos, ao encontrar a pele de um livro para crianças e jovens. No final da década de 1980, a editora Lúcia Jurema convidou o ilustrador Roger Mello para enfrentarem, ambos, o desafio. A Nova velha história de Guimarães Rosa parece ter inaugurado uma era de fecundo diálogo entre textos clássicos e jovens leitores.

Entre tantas realizações bem resolvidas, encontramos exemplos da transposição para livros de imagem em trabalhos de Rui de Oliveira, como A tempestade, de Shakespeare, e de Angela Lago, em Cântico dos cânticos. Outras propostas trazem a adaptação para HQ, que, em autores como Eloar Guazzelli e Manu Maltez, atingem um nível de excelência em Vidas secas e O corvo. Em todos esses casos, o texto continua dialogando com seus leitores habituais — os novos formatos e as ilustrações adicionando possibilidades interpretativas. Mas esses livros renovados possibilitam também a aproximação de outros leitores, muitos deles ainda em fase de construção de sua bagagem literária, permitindo experiências para além do horizonte habitual, sem que se percam os encantos das futuras leituras dos originais. Por essa via, segue Odilon Moraes, autor e ilustrador de carreira premiada, e que é, ademais, um estudioso do livro para além da função de suporte. Ao considerar a relação da criança com o livro bem mais natural e espontânea que a do adulto, o autor se permite maior liberdade para explorar o objeto, tanto no campo verbal quanto visual. Tal ponto de vista terá fundamentado a criação de duas obras que oferecem à criança e ao jovem o contato com clássicos brasileiros.

Restrito às antologias e aos livros didáticos, o poema simbolista Ismália, de Alphonsus de Guimaraens, ganha novos sentidos e permite percursos diversos por sua dualidade por meio das ilustrações e do projeto gráfico de Odilon, em publicação pela Sesi-SP. O formato sanfonado vertical traz singularidade para o objeto-livro e proporciona ao leitor a movimentação contínua do olhar, entre o em cima e o embaixo, como no próprio poema. A leitura segue a tensão entre reflexos: entre a lua vista no céu e aquela projetada no mar, tão vívida quanto a primeira, a jovem Ismália move seu desejo. Folhear o livro participa, de forma intrínseca, da construção de sentidos da poesia.

Da mesma forma que a lua no céu é refletida no mar, sendo mas não sendo ao mesmo tempo, as ilustrações quadro a quadro acompanham os versos em uma representação sensível e autoral, que espelha, em outra linguagem, as palavras do poeta. O sonho de Ismália toma corpo no objeto que serve de suporte ao texto de Guimaraens, mas se amplia a partir das ilustrações em tons de carmim, do formato pequeno e dos acabamentos da encadernação, como a capa dura e a caixa tipo luva. Com a proposta de um livro ilustrado, Odilon recolocou o poema, retirando-o da leitura convencional para levá-lo à leitura dinâmica de um suporte que agrada especialmente a crianças e jovens. E com certeza não só a crianças e jovens.

Se temos em Ismália a presença do ilustrador e designer, dando materialidade ao texto de outro autor, em Rosa, publicado pela Olho de Vidro, Odilon assume também a autoria do conteúdo verbal, em claro jogo intertextual com o conto A terceira margem do rio. Em uma delicadeza extrema, Odilon dialoga com Guimarães Rosa, embora não estabeleça vínculo de dependência com o conto original. Em narrativa aberta, mobiliza leitores sem idade pré-determinada com a potência de suas imagens e a economia de suas palavras. O autor realiza, de forma muito feliz, o que Haroldo de Campos chamaria de transcriação, ou seja, o resultado de trasladar ou traduzir um texto para outra linguagem e cria pela verbo-visualidade uma nova narrativa. No conto primeiro, são dois os tópicos narrativos centrais: o ascetismo, ou loucura, conforme a visão do senso comum, e a grande força da cadeia geracional, expressa pelo filho que narra o desgarramento do pai da ordem social. No livro ilustrado, a identidade — demarcada pelo nome Rosa, dado ao personagem e ao próprio livro — e a transgeracionalidade — ressaltada pela epígrafe e pela dedicatória — são os pontos em torno dos quais a narrativa se organiza, ainda que a ambiguidade seja o elemento principal.

As ilustrações, em tons terrosos, cuja estética é construída pela sobreposição de linhas, conferem a impressão de esboço ao invés de imagens acabadas, e trazem a indefinição para o processo significacional da obra. Desde a capa, com grande espaço branco na suposição do céu, em contraposição à terra, mas que ao ser vista em composição com a quarta capa possibilita a percepção do rio, Rosa joga com a ambivalência. A lombada de tecido e a capa dura dão um ar refinado ao objeto, ao mesmo tempo que o traço rabiscado, os amassados do papel original das ilustrações e a marca da fita que uniu as páginas do original do artista nos possibilitam refletir sobre a imperfeição, sobre os pequenos “defeitos”, dando visibilidade ao processo de criação, em paralelo à própria existência.

Premiado com o João-de-barro, em tradicional concurso para livro ilustrado, Rosa suscitou reflexões relevantes sobre os possíveis destinatários, por parte do júri, de que eu, Maíra, participei, junto à renomada ilustradora Angela Lago e ao editor Marcelo Del’Anhol, sob coordenação de Fabíola Farias. Um livro ilustrado não é, necessária e exclusivamente, para crianças, sustentamos. No entanto, também pode ser, posto que, editado, Rosa foi reconhecido pelo júri da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil como o melhor livro para crianças.

As duas obras aqui propostas à leitura inserem-se no grande grupo dos livros sem idade, tema de seminário na Universidade Federal Fluminense em 2012, organizado por mim, Nilma, ao lado de Margareth Mattos, em que puderam ser ouvidos escritores, ilustradoras, editoras, pesquisadores, bibliotecárias sobre obras que transitam por mãos para as quais não foram pensadas, escapando assim aos controles e às hipotéticas correções. Porque a literatura é uma experiência que demanda subjetividade, podendo caber em recipientes os mais variáveis.

Maíra Lacerda
Designer e ilustradora. Professora no Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF, com doutorado em Design pela PUC-Rio. Prêmio de tese pelo Museu da Casa Brasileira. Pesquisa os livros para crianças e jovens e a formação visual do leitor no laboratório LINC-Design.
Nilma Lacerda

Escritora, tradutora, professora, recebeu os prêmios Jabuti, Rio, Brasília de Literatura Infantojuvenil, entre outros. Trabalhou em várias universidades públicas, é colaboradora da UFF. Exerce a crítica de literatura para crianças e Jovens e mantém um Diário de navegação da palavra escrita na América Latina.

Rascunho