Dinheiro, memória e beleza

Esses três temas continuam rendendo reflexões para entender o mundo em que vivemos e para pensar num outro mundo que, porventura, queiramos construir
Ilustração: Joana Velozo
02/04/2021

No ensaio Dinheiro, memória, beleza, Roberto Schwarz analisa o romance O Pai Goriot, de Honoré de Balzac, através das três perspectivas elencadas no título: o dinheiro, a beleza e a memória. O dinheiro, no entanto, é o tema central do texto, de modo que tanto beleza como memória também são atravessadas pela sua lógica, submetendo-se a ela em larga medida.

Balzac foi um exímio observador das relações humanas — para Baudelaire, mais do que observador, Balzac foi um visionário —, e é considerado o fundador do realismo na literatura. Sua A comédia humana reúne quase uma centena de romances de 1830 a 1850 — entre os quais está a história que é objeto desta análise —, e é considerada um inventário da sociedade francesa no século 19.

Schwarz inicia seu ensaio fazendo uma analogia entre dinheiro e prostituição e apresenta duas características que atribui ao dinheiro: a capacidade de estabelecer uma equivalência onde há subjetividades incomparáveis e o fato de que, numa sociedade capitalista, os seres humanos acabam se tornando mercadorias, como diz Marx. O autor fala num egoísmo que, paradoxalmente, não está a serviço do eu, já que numa sociedade organizada de tal forma, o eu só é funcional quando quebrado.

Para Schwarz, o dinheiro é o fio condutor da obra de Balzac na medida em que a transformação de qualidades pessoais em produtos é o movimento geral do livro. Na história, que se passa na “Paris Mesquinha”, o jovem Eugène de Rastignac, recém-chegado à capital francesa, vem da província. É ingênuo, de coração puro, mas logo se vê deslumbrado com o encanto da grande cidade e da alta sociedade, que passa a frequentar enquanto vive numa pequena pensão decadente, onde conhece um senhor chamado de Pai Goriot, um homem que se tornou motivo de piada após perder todo o dinheiro sustentando os caprichos das duas filhas. Ex-comerciante próspero, o Pai Goriot usou toda a sua fortuna para garantir bons casamentos e uma vida luxuosa a elas, mas, na velhice, fora abandonado por ambas, vivendo solitário na pensão decrépita.

Rastignac se solidariza e se aproxima do Pai Goriot, compartilhando com ele as suas vivências e seus encantamentos: descreve Anastasie, a mulher rica e casada que conhece no primeiro grande baile que participa — e por quem se apaixona de imediato. Mais tarde, descobre que Anastasie é uma das filhas do Pai Goriot.

Nos trechos em que Rastignac fala sobre Anastasie, vemos que, assim como o dinheiro, a beleza é percebida como uma mercadoria, uma moeda de troca. A beleza é sentida como uma agressão e agride por exclusão, assim como a falta de dinheiro e de outros privilégios. Em uma sociedade pautada pelo consumo e pela concorrência, as mulheres odeiam Anastasie pela ostentação da beleza e da riqueza, o que lhe assegura popularidade, um passe social de alto valor. Já os homens a desejam como um troféu, a objetificam. Schwarz analisa a ambivalência dessa posição e o alto custo implicado em sua busca: menciona a dificuldade que as mulheres do romance têm para se vestir como se nunca tivessem passado por dificuldades. A encenação da ausência de dificuldade é dolorosa em si mesma, como nos lembra Delphine, a personagem que não chora para conservar o frescor. Para Schwarz, a beleza, nesse contexto, é feminina e apela para o senso masculino de propriedade.

As únicas personagens que conseguiriam escapar da lógica vigente seriam a Madame Beauséant e o criminoso Vautrin. Ela por ser muito rica desde sempre e, por essa razão, estaria alheia aos jogos implicados na busca por dinheiro (tem, desse modo, certa autonomia, certa liberdade em relação à expectativa social e pode confrontá-la, sendo excêntrica sem que seja excluída); e Vautrin por ser um fora da lei, regido por regras próprias. Os dois podem se negar a seguir as normas sociais, enquanto as demais personagens são escravas delas.

Schwarz observa que a vida na cidade era esvaziada de história subjetiva. O dinheiro não possui memória alguma, estabelece uma espécie de presente eterno. Então contrapõe a relação com o dinheiro vivida por Rastignac em sua nova condição de cidadão parisiense e a relação vivida por Laure, sua irmã que ainda mora na província, para quem o dinheiro é visto como fruto do esforço pessoal. Na província, toda soma tem a sua história, o dinheiro não aparece desconectado de seu processo de aquisição. Uma transferência financeira poderia ser, nesse caso, até mesmo uma questão de amor, pois o dinheiro economizado ao longo do tempo encarna memórias. Mas quando Laure envia suas economias para o irmão investi-las, o dinheiro passa a seguir a sua função usual: perde qualquer relação subjetiva e passa a ser regido pela lei da equivalência geral. “Não tem memória, nem cheiro”, diz Schwarz, citando Marx.

As cartas ingênuas da irmã comovem o protagonista, mas não o impedem de começar a usar as economias dela (aluga uma carruagem, compra um par de luvas) e, desse modo, iguala a dedicação pessoal de Laure ao serviço anônimo do cocheiro. O dinheiro passa a se opor à memória, a desfazê-la.

O romance de Balzac traz ainda a discussão a respeito do intercâmbio entre liberdade e dinheiro: um homem sem dinheiro não teria liberdade alguma, estaria aprisionado à vontade alheia. “O que é um homem sem um milhão? Um homem sem um milhão não faz o que lhe apraz, antes é um homem com quem fazem o que seja mais proveitoso.”

Compreensivelmente, Rastignac quer pertencer ao grupo dos que têm um milhão, pois só assim teria liberdade. Está posta a contradição: para ter liberdade, é preciso se vender. Porém, uma vez vendido, o homem se torna parte do sistema, mercadoria, deixando, portanto, de ser um sujeito livre.

Para Schwarz, a lógica de Balzac é implacável. Essa breve análise faz pensar em algo que não se restringe à sociedade francesa. Longe disso, tornou-se uma realidade geral, compartilhada, e esses três temas continuam rendendo reflexões importantes para entender o mundo em que vivemos e para pensar num outro mundo que, porventura, queiramos construir.

Fabiane Secches

É psicanalista, crítica literária e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo. Autora de Elena Ferrante, uma longa experiência de ausência (2020).

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