Manuel de Freitas

O autor cuja poesia é feita de uma seriedade carregada de humor
Manuel de Freitas, autor de “Todos contentes e eu também”
01/10/2007

Caro Valério, muito obrigado pelo seu e-mail e pelo interesse que demonstra acerca da minha poesia. Infelizmente tenho de lhe dizer que eu nunca respondo a questionários e a entrevistas, assim como nunca interfiro seja de que maneira for nos estudos que estejam a ser feitos sobre a minha literatura. Parece-me salutar essa distância crítica, até porque tudo o que haveria a ser dito está (ou não está) nos poemas. Em suma (e sem querer parecer estruturalista), sou um autor perfeitamente morto. Desejo-lhe um proveitoso trabalho e um ótimo 2007. Abraço do Manuel de Freitas.

É claro que não fiquei aborrecido com a resposta recebida na madrugada quente e estranha. Respeito totalmente a decisão do poeta. Na verdade, invejo a sua postura intelectual. Ah, que maravilha poder viver distante dos chatos letrados que vivem fazendo perguntas cujas respostas, bem o mal, já estão aí, no esqueleto e na carne de seus poemas! Sim, invejo-o.

Manuel de Freitas nasceu em 1972, no Vale de Santarém, e vive em Lisboa desde 1990. Além de se dedicar à poesia e à tradução, ele escreve regularmente sobre literatura no semanário Expresso e é um dos editores da revista Telhados de Vidro. Os seus livros, como os de tantos outros poetas da safra de 90, são objeto de culto restrito. Flutuando entre a ironia e a melancolia, balançando entre o prosaísmo de natureza confessional e a retórica de recorte decadentista, a poesia de Manuel de Freitas irrompe das vísceras da memória como um olhar avesso a tudo o que possa ser instaurado sob o prisma da normalidade.

Não se trata de uma poesia cotidiana, mas é uma poesia de todos os dias e da ruína de todos os dias, pois, mesmo quando o sujeito poético parece olhar diretamente o mundo, o que fica evidente nos poemas é mais o seu modo de olhar do que as qualidades reais dos objetos. A sua poesia é séria, no sentido de que não entretém nem acaricia, antes traz o fio cortante da espada, os golpes que nos devastam. Dela ninguém sai ileso. É dessa seriedade que falo.

Seriedade carregada de humor. A impiedosa ironia do poeta é sempre, mesmo quando ele não pretende isso, uma impiedosa auto-ironia. Caso contrário, como explicar tanta vitalidade literária por detrás de tanto negrume existencial? Encenação, acusarão uns — como se toda poesia, toda boa poesia, não fosse encenação —, desespero, reclamarão outros — como se toda poesia, toda boa poesia, não fosse um ato de desespero.

“Não sei se Manuel de Freitas é o melhor poeta português do nosso século. Não me interessa (é claro que minto). Posso, no entanto, afirmar que a sua poesia se ergue acima da cloaca em que laboram quase todos os nossos poetas atuais. Apenas posso dizer que nunca, como em Manuel de Feitas, a poesia disse tanto e de maneira tão intensa sobre o que é viver hoje (dado nem um pouco desprezível).” Palavras do crítico Hugo Santos.

Livros do autor
No Brasil: Jukebox (2005), publicado pelo Teatro de Vila Real; Blues for Mary Jane (2004), publicado pela &etc; [SIC] (2002), publicado pela Assírio & Alvim; Os infernos artificiais (2001), publicado pela Frenesi; Todos contentes e eu também (2000), publicado pela Campo das Letras, entre outros.

Poemas de Manuel de Freitas

Public castration is a good idea

Conheço um pouco o esgar imundo
de dois corpos enlaçados, as
banais previsões da cópula. E graças
a deus o sexo é igualmente repartido
para obsessão geral. Pudesse servir-me
essa amarga cinza de lençóis,
de mal-entendidos. Precisamente aí, onde
falar de coração nega qualquer lucidez.

É no entanto razão menor estar ausente
da vergonha comum. A quem balbuciar
a mais tênue recusa? Prefiro ainda o silêncio
da deserção, os argumentos que soube amordaçar, que
nem argumentos são. O mercado de carne
não há de por isso vacilar. E
entretanto poupou-se esperma, paciência
e a inútil alma que emprestamos às coisas.

18.15

Há todos os dias uma cidade, castrante
sucessão de lugares. Quando
a arma mais temível é o suor, a
peste, a contingente exalação,
aí sós nos quedamos, vergonha sem pesar.

E cumprem-se horários, infecções
alaranjadas na pele empedernida. É,
diz-se por vezes, a mais grata
hora de se ser defunto. Outras vezes
não se diz nada e basta a peste, o
impertinente suor aderindo ao
cor-de-laranja de uma vida
assim mesmo diluída.

Dias felizes para tantos contarem
aos porcos dos netos.

Stupor mundi

Sofremos com nojo a pertença em nós
inculcada de uma geração, as suas taras
vindas de longe, modos diferentes
de se ser igual. Com uma raiva triste
os vemos foder, procriar, indo aos poucos
definhando, esperados que são
por pós-modernos jazigos.

Não há nada a fazer,
nenhuma palavra nos salva.
É-se sempre contemporâneo da merda.

Poema sumário das tabernas de Lisboa

Rua de São Marçal nº 56, rua de Campo de
Ourique nº 39, rua de São Bento nº
432, rua da Cruz dos Poiais nº 25-A. Calçada
do Combro nº 38-B, rua da Atalaia nº 13,
rua de São Miguel n° 20, rua da
Rosa nº 123. Travessa do Conde de Soure nº 7,
travessa dos Remolares nº 21, rua do
Jardim do Tabaco nº 3, rua da Regueira nº 40,
rua das Escolas Gerais nº 126, rua de Santa
Catarina nº 28. Largo do Chafariz de Dentro nº 23,
rua Sampaio Bruno nº 25, travessa de São
José nº 27, beco dos Toucinheiros nº 12-ª Rua
Cidade de Rabat nº 9, travessa do Alcaide
n° 15-B, calçada de São Vicente nº 12,
rua das Flores nº 6, travessa da Espera nº 54.

Praça das Flores nº 5.

Purgatory of fiery vulvas

Um buraco úmido e afável onde entras
sem jeito, dir-se-ia que devagar, solenemente
— para que seja mentira. Tão breve
esse buraco, o entrar nele contundido.

Num instante te resumes
ao vômito branco que desesperado o açoita.
Que depois languidamente
para nada escorre
como um trôpego verme.

De tudo isso digamos já agora a vergonha
e o fascínio de quase nada, desse nada
avizinhando-se em nojo do saloio vazio.
da perfeição imbecil,
da dor maior.

A merda mais pura
buscando-te
as fossas da alma.

Valério Oliveira

É escritor e poeta. Autor, entre outros, de Todos os presidentes.

Rascunho