Quase carta

"O ar que me falta", de Luiz Schwarcz, é uma confissão íntima, um exercício de coragem e desnudamento, no qual o autor expõe sua fragilidade
Luiz Schwarcz, autor de O ar que me falta
01/08/2021

Termino a leitura de O ar que me falta, livro de memórias de Luiz Schwarcz. Traz um subtítulo que o reduz: “História de uma curta infância e de uma longa depressão”. É bem mais que isso. É um soco — e nos tira o ar. Sufocado, penso em desistir de escrever sobre ele. Talvez, em vez de um comentário crítico, eu devesse escrever uma carta. Uma carta pessoal para Luiz. Uma carta antiga, à mão, com minhas letras tortas, que eu despacharia pelos correios.

Penso seriamente na carta. O livro de Luiz provoca em mim sentimentos estranhos, que me afetam. Gosto de livros assim — que me derrubam. Mas, penso ao contrário, em uma carta eu trataria talvez de coisas muito pessoais. Luiz Schwarcz editou vários dos meus livros. Temos uma relação respeitosa. Há anos, muitos anos, eu lhe devo mais um livro, que não consigo entregar. E ele não me cobra. Ele suporta.

Acontece que O ar que me falta é uma confissão íntima. É um exercício de coragem e desnudamento, em que Luiz Schwarcz expõe, sem disfarces ou jogos, sua fragilidade. As dificuldades, imensas, na relação com o pai. As crises insuportáveis de depressão. O sentimento de fracasso. Em nosso mundo de sucesso e perfeição, quantos homens conseguem fazer isso? No ambiente intelectual em que ele circula, desfilam poses, títulos, assinaturas, currículos. Em resumo: couraças. Poucos, muito poucos, conseguem despir a armadura e expor a verdadeira face. E Luiz faz isso. É comovente.

Em uma carta, eu chegaria a terrenos que não sei se estou autorizado a pisar. Creio, francamente, que não estou. Desisto da carta. Quem sabe, um dia, eu tenha a chance de tomar um vinho lento com Luiz e, de peito aberto, esquecendo dessas bobagens de editor e autor, simplesmente falar?

Quase desisto também de escrever essa coluna — para que vocês vejam como O ar que me falta me desassossega. Já ia me render quando, de volta à página 163, topo com pensamentos que rabisquei nas margens. Trechos em que Luiz fala de seus “romances frustrados”. Sim, ele tentou escrever um romance. Mais de um. Não avançou em nenhum deles. Renegou-os.

Constata, surpreso: “É curioso como esses romances frustrados que fazem parte de minha vida entram agora nas minhas memórias”. Logo à frente, severo consigo mesmo, continua: “Servem para que eu me defina pelo que não publiquei. E para que eu hoje ironize os pobres personagens que certo dia pensei em ter criado”. O tom é de reprimenda. De censura. Castigo.

As memórias de Luiz são regidas por um rigor que, a mim, parece desmedido. É verdade que ele mesmo fala de seu espírito metódico, de seu apreço pelo esmero, seu culto à perfeição. Esses ideais, na vida de um editor, podem, talvez, funcionar. Mas, transpostos para a rotina de um escritor, eles podem se transformar em instrumentos de punição. De engessamento. Algemas. Argumentos “sensatos”, “críticos”, “inteligentes”, que desacreditam o que se escreve.

Já não paro de pensar nos romances que Luiz renegou. Páginas à frente, falando ainda dos romances inconclusos, ele diz: “Não sei qual dos esboços de romance que escrevi em períodos de depressão foi pior”. Torna-se, a cada linha, mais impiedoso. Adota o tom de um inspetor de escola, chega a dizer: “Anos de trabalho no mercado editorial deveriam ter evitado que eu embarcasse em aventuras tão furadas”. Parece que esse inspetor está prestes a colocá-lo de castigo. Em fila no corredor? Olhando para a parede? Em um poço escuro? Aqui já chego, porém, a uma fronteira que não ouso ultrapassar.

Depois da leitura de O ar que me falta, muitas ideias continuam a se revirar em minha mente. O livro me desestabilizou. Trago-o engasgado. Não é qualquer livro que degola seu leitor.

Um pouco mais abaixo, surge uma frase ainda mais estranha, que me deixa perplexo: “Os dois textos surgiram em momentos em que a autocrítica estava prejudicada pela frenética velocidade de minha vida interior”. A confissão, sincera, me faz lembrar de um momento que vivi em uma sala de aula. Um dia, um aluno me apresenta o rascunho de um conto. Antes de entregar, ele me adverte: “Até a página dois vou bem. Mas, a partir da página três, não sei o que houve. Acho que é puro lixo”.

A aula tinha terminado. Aproveito e o convido para um café. Leio, em silêncio, seu conto. Nas duas primeiras páginas, encontro um texto bem escrito, correto, aplicado. Um relato bem-acabado — como um terno entregue por um alfaiate competente. Mas, se há quase perfeição, há também o tédio. A previsibilidade. O autocontrole abusivo.

A partir da terceira página, contudo, o conto de meu aluno começa a tremer. A boa lógica desanda. As frases rangem, as bainhas desfiam. Ali sim, o aluno abandona seus bons hábitos, desiste da aplicação e passa a escrever com os nervos. Com a verdade. Ali está, enfim, o que me interessa. Sem pensar mais, eu lhe digo: “Pegue as duas primeiras páginas e jogue fora. Fique com a terceira página e siga em frente. Nela está o que importa. É nela que você está”.

Lembro-me do olhar perplexo do rapaz. Ele tremia. Era como se eu o tivesse despido. Arrancado suas calças. Não conseguiu me dizer nada, agradeceu e fugiu. Achei que nunca mais voltaria. Mas, na semana seguinte, ele me trouxe uma nova versão do conto. Não teve coragem de ler em sala. Entregou-me em um envelope lacrado e pediu que eu só o lesse em casa. Foi um dos melhores relatos que um aluno já escreveu.

Senti um grande alívio — embora o contato com a verdade seja sempre doloroso. Não é fácil abandonar a “autocrítica” e entregar-se a sua própria voz incontrolável. A “autocrítica” costuma ser um instrumento de defesa. Eu podia ter dito: “Fique com o que você tem de melhor. Fique onde você se esforçou mais”. Mas não se tratava de competência, ou de performance. Na literatura, não é disso que se trata. Ao contrário, tive a coragem de dizer: “Fique com o que você tem de pior”. Eu sabia: só naquela terceira página, de fato, o rapaz estava inteiro.

Que vontade imensa me vem agora de ler os “romances frustrados” de Luiz Schwarcz. Lançados no descrédito, eles não tiveram a chance de existir. Foram abortados — pelo medo? Depois da leitura de O ar que me falta, muitas ideias continuam a se revirar em minha mente. O livro me desestabilizou. Trago-o engasgado. Não é qualquer livro que degola seu leitor.

O ar que me falta
Luiz Schwarcz
Companhia das Letras
199 págs.
José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho