Há mais de uma hora que estou na fila. Minha senha é a 147, mas a fila não respeita a numeração de chegada. Alguns até já jogaram seus bilhetes numerados fora. Uma pequena lixeira, a um canto do salão, transborda de números inúteis. As chamadas, que não são respeitadas, aparecem em um painel eletrônico, erguido sobre as mesas de atendimento. Volta e meia, o painel estala e a tela escurece. Os números de chamada somem, mas quem dá importância a isso? Somos camelos que seguimos nossas próprias sombras em meio ao grande deserto.
Atrás de mim, um homem fedorento e barrigudo, que carrega uma caixa de isopor, começa a me empurrar. Mantenho-me rígido, ignoro-o, mas isso não basta, ele prossegue com seus trancos. “Só nos resta a paciência”, eu lhe digo, em uma tentativa de acordo. Ele me encara com olhos vermelhos, de coelho, esboça um sorriso que se conclui em uma careta. Abre a boca — tem uma língua imensa —, está prestes a dizer alguma coisa, mas nada diz. Toda a mímica se conclui com um longo espirro. Perdigotos voam sobre meu peito. Não se desculpa.
Dou-lhe as costas. Com um lenço de papel, me ponho a limpar os salpicos que se espalharam sobre minha camisa. É nesse momento que, depois de um estrondo que se assemelha ao uivo de um ogro, as luzes do salão se apagam. A escuridão absoluta me imobiliza. Ao meu redor, depois de um longo “ah” de decepção e desespero, um grande silêncio indica que ninguém se move. O tempo, como que liquefeito, se dissolve na noite. Até que uma voz de comando, viril e desagradável, ordena: “Ninguém se mexa, mantenham-se na fila”. O silêncio se torna abafado. Estamos congelados no breu, à espera já não se sabe de quê. Mas, submissos e tristes, esperamos.
Às minhas costas, o homem fedorento continua a me empurrar. Dois ou três espirros, barulhentos, cortam o silêncio da sala. Não venta, não há estrelas, nada se move. A noite burocrática se assemelha à morte. Ou estamos mortos? Então, para assinalar que ainda estamos vivos, a mesma voz masculina se ergue: “Avisamos que todas as portas foram fechadas. Para assegurar a serenidade dos trabalhos”. Mas a que serenidade ele se refere? Não é porque estamos imóveis que estamos serenos. Dentro de meu peito, um segundo coração dá saltos. Agora somos prisioneiros da secretaria. Ainda conseguirei dar entrada à minha solicitação?
Ninguém explica por que as luzes se apagaram. Deve haver, em algum lugar, alguém cuidando disso. Mas quem? Deve haver alguma explicação, banal que seja. E inútil, porque explicar não é o mesmo que resolver. Alguns rumores, ainda tímidos, se espalham pelo salão. Palavras incompreensíveis — estamos todos falando grego. Consolo-me pensando que, na noite profunda, é justo que até as palavras se desmanchem. Enquanto isso, ao fundo, uma voz feminina e aguda se põe a cantar. Pode ser uma valsa, pode ser um hino religioso. Não se deve mesmo esperar clareza de uma canção uivada na noite. “Manda essa mulher calar a boca”, alguém grita.
Uma ideia me toma: sou cronista. E, como cronista, devo não só estar atento aos murmúrios do mundo, mas saber lhes dar algum sentido. Ao lembrar que sou cronista, uma espécie de armadura envolve meu corpo. Já não sou um homem perdido na noite, mas um homem armado na noite. O sujeito às minhas costas continua a me empurrar, mas isso já não me incomoda. Continua a espirrar também, mas desprezo seus perdigotos. Nada mais me perturba. Sou cronista, estou aqui a serviço da crônica, afastei-me do real e me abriguei nas palavras. Quisera ter um caderno de notas para registrar minhas impressões. Nessa escuridão, porém, nada conseguiria anotar. Contudo, se sou cronista, sou capaz de registrar as percepções dentro de mim. Não esquecer que o verdadeiro cronista só tem a si mesmo.
Sou cronista — repito em silêncio — e estou aqui para isso mesmo, para que a realidade me atinja. Para que ela me esbofeteie. E devo me manter impassível. Não sou um detetive, em busca de provas. Não sou um repórter, que persegue os fatos. Tampouco sou um arqueólogo, que escava o passado em busca das origens. Tudo o que tenho é o presente. Nada espero da realidade, a não ser que ela me deixe contemplá-la. Mesmo no escuro, entregar-me à contemplação cega. O cronista é aquele que dá a outra face. Aquele que nada espera.
“A velha desmaiou”, alguém grita. Não me espanto, com esse abafamento, nem todos aguentam. Agora alguém arrasta um corpo. Estará morta? “Abram caminho”, pedem, mas na escuridão é impossível divisar qualquer caminho. “Vamos evitar tumulto”, a autoridade ordena. Todas essas vozes, que espocam de vários lados do salão, se misturam para nada. Falamos grego. As vozes não passam de vagidos que sacodem a noite burocrática. Ainda tenho comigo o papel em que se registra minha senha. Número 147. Ou será 187? Agora de nada serve. É só um talismã que atesta que eu ainda respiro.
Lá fora, trovões começam a espocar. Mas o que pode uma tempestade contra um grupo de prisioneiros? Reféns da noite, nada nos salva. Somos ratos retidos dentro de uma caixa escura. “Mantenham-se em seus lugares”, o segurança volta a dizer. Como se fosse possível ocupar outro lugar. O salão se tornou um grande borrão. “Preciso sair daqui”, eu me digo. “Voltarei outro dia.” Também essa ideia, em descompasso com a realidade, se assemelha ao grego. Meus pensamentos não combinam com o mundo que me cerca. Mas um cronista não busca coerência, busca coragem.
A fila, mesmo no escuro, volta a se mover. É uma serpente cega que, para continuar viva, se debate na noite. Para que avançar se ninguém pode ser atendido? Avançar para que — para despencar no abismo? Sem outra opção, já que o homem barrigudo volta a me empurrar com força, dou dois passos à frente. A ideia de fugir se mostra inútil. Então, me ocorre que, com sua sensibilidade perfurada e sua contemplação às cegas, o cronista é aquele que foge para dentro. É dentro de mim, e não fora, que algo terá que se resolver. Resigno-me. Entrego-me. É só por isso, porque me entrego, hoje consigo escrever a crônica que agora ofereço, envergonhado, a meu leitor.