A governanta cega

A literatura é o mundo tal qual nós o conhecemos, mas é o mundo acrescido de um olhar imprevisto, reflexos turvos, outras visadas
Ilustração: Mello
02/08/2022

Depois de ler uma de minhas crônicas, um aluno, Olavo — assim eu protejo sua identidade — me pergunta onde fica a realidade no que escrevo. “Quando eu o leio, nunca consigo entender onde piso”, ele me diz, em tom de reclamação. Vacila um pouco, toma coragem e avança: “Parece que o mundo está sempre de fora de seus escritos”.

Olavo é jornalista. Para ele, a realidade deve comparecer, com a máxima clareza, nos relatos que escreve. Não suporta textos ambíguos, ou obscuros. A incerteza e o imprevisto lhe causam náusea. “Se você não sabe o que dizer, melhor não dizer”, ele argumenta. Aprecia a lisura e a retidão. Só aceita uma escrita transparente. A escrita deve ser um lago de águas límpidas e pacíficas.

Até porque também sou jornalista, por longo tempo, exatamente como meu aluno, também acreditei que a literatura era uma ilustração do mundo. No máximo, uma decoração, ou então uma reforma do mundo, uma reordenação sensata do real. Fosse como fosse, o mundo permanecia em seu lugar. Não perdia a visibilidade. Eu ainda estava preso à esfera da clareza. Tudo o que me parecia confuso e tenso, eu repudiava.

Mas eu mudei — e muito. Tentei explicar a Olavo que literatura é, sim, o mundo tal qual nós o conhecemos. Mas é o mundo acrescido de alguma outra coisa: um olhar imprevisto, reflexos turvos, outras visadas. Logo: a literatura não contém o mundo, como um lago transparente contém os peixes coloridos que nele brilham. A literatura o desdobra e, ao desdobrar, o turva.

Através da própria escrita, descobri que a literatura vai além do mundo. Que ela é uma fenda que se abre para vidas paralelas. Sim, ainda é do mundo que se trata, ainda é a vida que está em jogo, mas não é mais o mesmo mundo e tampouco é a mesma vida.

São coisas (imagens, bandas, reflexos) que delas se desdobram — como quando esticamos sobre a cama uma colcha recém-chegada da lavanderia, impecável e bem passada. Conforme você a abre, outros mundos saem desse mundo inicial e fixo — um mundo engomado. A cada movimento, a realidade anterior desaba, sendo substituída por outras realidades. A goma se esfarela. Novas formas aparecem.

Sim, ele ainda é o mundo que conhecemos e experimentamos, mas não está mais preso aos limites do que chamamos realidade. Não é mais o embrulho pronto que nos entregaram no balcão da lavanderia. Também não é “qualquer coisa”: é o que você consegue arrancar (desdobrar) daquele pacote inicial. O que você encontrou de diferente dentro do mesmo. Ainda é a vida, sempre a vida, mas alargada. Ela toma outras formas que nunca imaginamos que pudesse conter.

Não li sobre isso em lugar nenhum, não li em nenhum livro. Cheguei a isso escrevendo. Foi o desfiar paciente da escrita — o desembaraçar das minúcias, como nos gestos de uma mulher que cata seus feijões — que me fez ver o que vi. Não “li sobre” — experimentei. Não raciocinei — senti. Poderia talvez dizer assim: aconteceu.

A literatura carrega pedaços imensos da vida, ela ainda é a vida, mas já é outra coisa também. É como dizemos: “Será que existe vida em outros planetas?”. Parece que existe sim, mas o grande erro está em procurar, nesses outros mundos, a vida tal qual nós a conhecemos e concebemos. Queremos encontrar, em outro lugar, muito distante, exatamente a mesma coisa. Temos medo da decepção. E da cegueira.

A vida poder ter outras formas, outras regras, outros ritmos, o que leva a outras necessidades, a novos desejos e novas faces. E, no entanto, apesar da estranheza, apesar do susto que isso desperta, apesar de até não conseguirmos vê-la, ela ainda é vida, ainda é de nós que se trata.

Sento-me para escrever. Planejo, tomo notas, construo modelos, imito as maquetes dos arquitetos. Armo-me de recursos, de estratégias, de planos detalhados, de balancetes. Meço, divido, separo, arrumo. Tudo isso me dá segurança. Experimento a ilusão de que sei onde piso.

Contudo, quando começo efetivamente a escrever, por mais que me esforce para seguir o caminho traçado, faço sempre outras coisas. Sempre outras coisas, e mais outras. Os planos, miseráveis planos, ficam para trás. Eles são como a fôrma que, depois de assado um bolo, atiramos na pia para lavar mais tarde. Quando dou por mim — se é que em algum momento eu dou por mim —, ajo como uma governanta cega.

Essa governanta traz nas mãos um pacote compacto, vincado, bem dobrado e embalado – a colcha bem passada que recebeu da lavanderia. Quando ela começa, porém, a desdobrar a colcha, por mais que traga na mente a imagem abstrata do objeto que tem nas mãos, as coisas desandam. As pontas se perdem. As barras da costura se enrolam. Desandam mesmo. Melhor dizer: as coisas enfim andam.

Autônomas, guiadas agora por alguma mágica, partes da colcha desaparecem, se desenrolam em direções imprevistas, tomam formas não concebidas, que a pobre governanta não previu e que não consegue entender.

Embora irritada e cansada, a governanta já não pensa, não segue plano algum, não tenta chegar a nada. Limita-se a desdobrar e esticar, esforça-se para alisar e prender, mas a colcha se desmonta e se desenrola em outras direções, de modo que a cama impecável que ela planejou nunca estará feita. A colcha toma formas novas e bruscas, age por si, ganha vida. Torna-se um bicho que ela já não consegue domar.

Quanto mais a pobre mulher se esforça e luta para organizar seus gestos, mais eles se desorganizam. Quanto mais tenta impor ordem à arrumação da cama, mais as cobertas, amarfanhadas, lhe escapam. A realidade respira — a colcha respira, como um imenso polvo, cheio de pernas. Ela nada mais pode fazer contra esse animal vivo, embora feito só de um tecido grosso e macio, que tem nas mãos.

Até que chega um momento em que, em vez de cobrir a cama, a governanta cega, desolada, à beira de um ataque de nervos, se vê envolta pelo tecido que não pode mais controlar. A colcha a venceu. Ela ia fazer algo externo, só um trabalho rotineiro que exigia uma técnica antiga, mas o externo a devorou e se tornou interno. O imenso tecido, todo amassado e disforme, agora a envolve e toma seu lugar. Esse tecido é a literatura.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho