Há, de Ledusha Spinardi

Os muitos tipos de homes — do bárbaro ao delicado — que habitam o poema da autora paulista
Ledusha Spinardi, poeta, jornalista, tradutora brasileira
01/05/2022

Os que só tragam com filtro. Os que conduzem a dança. Os de papo requentado. Os que espalham o conflito. Os grosseiros de foulard. Os que fazem as cutículas. Os que têm presas no olhar. Os prósperos despreparados. Os que vão lamber o limbo. Os belos atormentados. Os previsíveis sem sal. Os ternos de abraço manso. Os que usam o saber como arma de poder. Os que citam sem parar. Os que gostam de mulheres. Os que gostam das mulheres. Os mitos desamparados. Vampiros por trás de lentes. Os que só querem mamar. Os que portam falos bélicos. Os marinheiros sem mar. Os que nos devolvem o riso. Sensíveis sem onde morar. Os que decifram. Os que devoram. Casados infantilizados. Os que consertam cadeiras. Os indeléveis carnais. Os de coração falido. Raros sexys calados. Os gananciosos banais. Marxistas que espancam mulheres. Os que se desmancham no ar.

Esse poema em prosa foi publicado no livro Exercícios de levitação, de Ledusha Spinardi, em 2002. Antes, contudo, apareceu na coluna Risco no disco, jornal Folha de S. Paulo, em 25 de outubro de 1998. Do jornal ao livro, alguns “versos” (isto é, algumas frases) sumiram, outros entraram; alguns mudaram de lugar, outros foram reescritos. Em síntese, dois sumiram, cinco entraram, três foram remanejados e três ganharam nova versão. Trata-se, portanto, de um novo texto, e o trabalho de reelaboração já diz bastante do teor geral do poema, que fala da diversidade, mas mais ainda da adversidade dos homens.

Entre o título — o verbo “Há” — e os versos, quase todos iniciados pelo pronome “Os”, uma elipse se evidencia, e a palavra que pulula a cada sentença é mesmo “homens”: “há homens que só tragam com filtro”, “há homens que conduzem a dança”, “há homens de papo requentado”, “há homens que espalham conflito”, e assim por diante. A escritora faz um mapa bastante amplo dos tipos de homens que grassam por aí. O leitor deverá oscilar entre o espanto de identificar amigos definidos nas frases e o espanto de se reconhecer, com algum mal-estar, em algumas delas. Nos 33 versos em forma de prosa, há de tudo um muito.

A impressão de poema não vem somente do fato de o texto estar em livro catalogado como “poesia”, e assim estar rodeado de poemas em versos. Há uma deliberada elaboração rímica e rítmica, portanto, sonora. Quase todos os versos possuem sete sílabas, e alguns outros, oito; o verso mais longo — “Os que usam o saber como arma de poder” — pode ser lido como se fora dois versos heptassílabos. As 33 rimas externas têm como tônicas as vogais: “i a a i a i a a i a a a e a e e a e a e a i a i o i e a i a a e a”, ou seja, até o longo verso supracitado, com rima interna em /e/ (saber, poder), há 12 versos só com rimas em /i/ e /a/; depois, se alternam sequências de rimas em /a-e/, em /a-i/ e novamente /a-e/. Há apenas uma rima (aparentemente) isolada em /o/ — “Os que devoram” — que, na verdade, dialoga semanticamente com o verso anterior — “Os que decifram”.

É bom reforçar toda essa sutil mas firme estrutura, resultado da referida reescritura (do jornal ao livro), pois isso retira a impressão de mera enumeração espontaneísta. Em Minima moralia, Theodor Adorno diz que “Os textos assaz elaborados são como as teias de aranha: densos, concêntricos, transparentes, bem arquitravados e firmes. Absorvem em si tudo quanto ali vive. As metáforas que esquivamente passam por eles convertem-se em presa nutritiva”. Há, aqui, uma síntese do que faz o texto de Ledusha: atrai o leitor-inseto, agora presa. Importa, sobretudo, seguindo o espírito do livro como um todo e de seu título — Exercícios de levitação — deixar-se levar pelas imagens, pelas metáforas que as frases desenham e insinuam, tentando desentranhar sentidos delas, sabendo-se, desde sempre, estar sendo capturado pela teia da aranha. O que será esse tipo de homem “que só traga com filtro”? Machões, fortes, destemidos? E homens “que conduzem a dança” serão líderes, pessoas com iniciativa? E aqueles de “papo requentado” serão sujeitos tautológicos, repetitivos, precários intelectualmente?

O gosto e o desafio de desvendar cada frase grudam no leitor, que vai se perguntando: “os que espalham o conflito” serão intrigueiros, fofoqueiros? Serão hipócritas ou anacrônicos “os grosseiros de foulard”, ou seja, alguém que veste algo, uma echarpe, que não lhe cai bem? Os homens que fazem as cutículas serão delicados, civilizados, quiçá feministas? E assim vamos, verso a verso, na dança das hipóteses: “Os que têm presas no olhar” serão sedutores? “Os prósperos despreparados” serão meritocratas, ricos mas incompetentes? “Os que vão lamber o limbo”: insignificantes, que ficarão esquecidos? “Os belos atormentados” serão narcisistas em crise? “Os previsíveis sem sal” se assemelham a chatos. Mas “ternos de abraço manso” lembram pessoas delicadas. Já os que “usam o saber como arma de poder” lembram o final da Lição de Barthes: são arrogantes. Um pouco parentes daqueles que citam sem parar: pedantes. Há “os que gostam de mulheres” e “os que gostam das mulheres”, isto é, os que as veem como objeto ou como sujeito. “Os mitos desamparados” serão gênios incompreendidos? Em “vampiros por trás de lentes” algo soa bem enigmático: será uma figura fria e calculista? “Os que só querem mamar” são, salvo engano, aproveitadores e oportunistas. “Os que portam falos bélicos” devem portar violência e tristeza. “Os marinheiros sem mar” podem ser falsos, demagógicos. Tudo é e não é, diria Riobaldo.

A essa altura, enredado, não há mais volta para o leitor. O jogo exige que o leitor vá — em frente. “Os que nos devolvem o riso” serão solidários ou, ao contrário, rancorosos? “Sensíveis sem onde morar”: carentes? Há “os que decifram e os que devoram”: enigma e intérprete. “Casados infantilizados” parece paradoxal, parece alguém que adentrou uma ordem que não domina. “Os que consertam cadeiras” são práticos. “Os indeléveis carnais” são sensuais. “Os de coração falido” talvez sejam românticos — ou desiludidos do amor. “Raros sexys calados” são também sensuais, mas tímidos. “Os gananciosos banais” são capitalistas sem escrúpulos. “Marxistas que espancam mulheres” envergonham a causa e a humanidade.

A última frase-verso, “Os que se desmancham no ar”, não só recupera a penúltima, porque vem da famosa máxima do Manifesto Comunista de Marx: “tudo o que é sólido se desmancha no ar”, mas sintetiza o espírito do poema . Na máxima de Marx, lida sob múltiplas perspectivas, sobressai a ideia de que, se mesmo as coisas sólidas são passíveis de transformação, as coisas em tese abstratas, como as complexas relações sociais, por exemplo, são mais ainda, e portanto ideias, crenças, sistemas estão submetidos a transformações regidas, ao fim e ao cabo, pelo movimento da história e de suas lutas. Assim, no poema em prosa de Ledusha, o último verso (“Os que se desmancham no ar”) pode estar se referindo, crítica e parodicamente à frase de Marx, mas também, considerando o conjunto do poema, a homens voláteis ou dispensáveis.

Homens voláteis, dispensáveis, tímidos, românticos, sensuais, racionais, carentes, falsos, violentos, oportunistas, calculistas, pedantes, delicados, chatos, narcisistas, sedutores, delicados, hipócritas, fofoqueiros: de tudo há em . Esse poema dialoga, estreitamente, com o também poema em prosa Rombos, em que Ledusha enumera mulheres e atitudes: “Marta é tão delicada que escolheu deixar saudades. Lia comprou palmeiras e depois cadê varanda? (…) Lídia aboliu o sexo e agora só vai de ópera e dieta à base de aipo. Silvia trocará as cortinas e as próteses mamárias. Dulce deixou a análise e mandou o fulaninho, de carrinho, enfim, às favas. (…) Renata nem pensa em ter filhos, apesar do alto salário. Norma diz que se mata caso o cachorro só lata. Rita rendeu-se ao gringo, agora que ficou surda”. A epígrafe de Lacan — “La femme n’existe pas” — amplia a provocação.

Essa técnica da enumeração a poeta também utilizou em belíssimo poema, Imaginar, do livro A lua na jaula, finalista do Jabuti em 2019, em que vai aludindo a Drummond, Torquato Neto, Emily Dickinson, Manuel Bandeira, Ana Cristina Cesar, Oswald de Andrade, Hilda Hilst. Os versos que dedica a Ana C. são dos mais belos em língua portuguesa: “as asas de lava de Ana Cristina zumbindo no ar/ e se espalhando sobre as ruínas de Copacabana”. A propósito, parte do ostracismo a que a crítica tem injustamente deixado a obra poética de Ledusha talvez se deva a uma inconsciente comparação entre as duas obras. Ambas, Ledusha e Ana C., têm muitas afinidades, tiveram suas obras publicadas na célebre coleção Cantadas literárias, da Brasiliense: a paulista, com Finesse & fissura, em 1984; a carioca, com A teus pés, em 1982. A crítica de poesia, radicada na universidade, ficou e é fascinada pela poesia de Ana C., e isso pode ter contribuído para ofuscar poéticas semelhantes.

Mas nem tão semelhante assim. Ana C. dificilmente assinaria alguns dos clássicos e deliciosos poemas curtos de Ledusha, como: De leve: “feminista sábado domingo segunda terça quarta quinta e na sexta/ lobiswoman”, ou Nocaute: “exagerei no decote/ sapequei-lhe/ um verso de goethe/ saí de fininho”; ou Finesse e fissura: “melindre da língua/ fetiche do meu verso que aflora/ minha finesse que finda/ minha tendresse que míngua/ minha fissura que implora”. Em ambas, contudo, e com certeza, a ternura rima com ironia, a elegância com contundência, a delicadeza com engenho. Ledusha trama: não desmancha. Ledusha levita, risca, enjaula. Há muita Ledusha, aranha, à espera da sua fissura.

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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