🔓 As mentiras que os leitores contam

As invenções com a maior cara de pau de quem finge que gosta de ler para não parecer que odeia a leitura
22/08/2021

Na crônica anterior, intitulada As mentirinhas que os escritores contam, escarafunchei uns paradoxos entre o que alguns colegas de ofício dizem e o que fazem depois, especialmente nessa postura esquisita de ostentações variadas nas redes sociais.

Mas pera lá. Em tempos de mentirinhas, entre os leitores a coisa também não fica atrás. Essa ideia veio num daqueles momentos em que o pensamento voa, quando estamos estáticos num engarrafamento ou mesmo cofiando a barba enquanto olhamos para o nada. São aquelas cenas em que miramos num ponto fixo e, quem vê de fora, pode acreditar claramente que estamos tecendo alta filosofia, quando na verdade ruminamos trocadilhos ou o refrão de músicas populares antigas que o ouvido pescou de soslaio.

Existe uma medição chamada Programa Internacional de Avaliação de Estudantes. Em inglês, a sigla é Pisa e, no Brasil, estamos pisados mesmo, pois o país fica sempre entre os últimos. Isso me lembra um termo que ouvia bastante há um tempo, mas parece que foi esquecido: reformas de base.

No que se refere à leitura, a gente oscila entre o desânimo completo das estatísticas e as fagulhas de esperança aqui e ali. Mas como esta crônica tem pelo menos a intenção humorística, vamos às caricaturas.

Há uma linha de trabalho na área chamada “perfis de leitores” (não confundir com leitores de perfil), em que a gente observa todo o contexto que cerca o momento da fruição literária. Se, por um lado, a intenção é apontar para o maravilhamento da recriação de mundo provocado pelas pluralidades da experiência artística (bonito isso, vou anotar), por outro não podemos ignorar aquilo que se situa entre o embromation, ou, como disse um professor de latim, a ars enrolandi, a arte de enrolar. Vamos a alguns:

  • Quando reli Proust aos 9 anos… — ouço isso o tempo todo, especialmente de escritores falando sobre suas origens, mas nunca vi tal cena. Se alguém já viu e puder provar, me avise. Mas que não seja “ah, eu fui essa pessoa”, pois te enquadro logo na mesma categoria. Nessa idade eu queria mesmo era ler Turma da Mônica que, aliás, preciso reler.
  • Li o livro sim, professora. É sobre… — é sobre o resumo que você pegou fácil na internet, salafrário/a, porque não sobrou tempo pra ler de tanto fazer dancinhas e congêneres.
  • Foto com livro aberto e legenda “devorando todo o Machado” — todo mundo sabe que a leitura durou o mesmo tempo que você levou para tirar a foto, pois chegou a nova temporada daquela série imperdível que vai desaparecer mais rápido que a obra do Bruxo do Cosme Velho.
  • Lá em casa temos muito o hábito da leitura, sabe? — pelo que me lembro, não tem estante nenhuma na sua casa, e foi você mesmo/a que torceu o nariz quando fui à festa de aniversário da sua criança e dei de presente um livro, ao passo que todo mundo só deu brinquedo. Aliás, hábito é escovar os dentes e tomar banho. Ler é algo que se faz conscientemente, ó pá.
  • Valorizamos muito a literatura brasileira aqui na redação — peraí, seu jornalista literário, então por que você baba tanto o ovo de qualquer publicação externa, dando espaço apenas aos nacionais das modinhas que o seu mesmo jornal ajuda a construir (para abandonar logo depois, vale lembrar), como se não existisse literatura brasileira boa fora do raio de vosso umbigo?
  • Leio o tempo todo porque isso me ressignifica na empresa — sim, você lê autoajuda corporativa nesses livros com palavrões no título. Boa sorte lá. Não, não quero emprestado, valeu!
  • Adoro poesia, adooooro! — então por que não coooompra livros de poesiiiiia? É porque tem menos leeeetras?
  • A leitura na escola me traumatizou para sempre — poxa, nesse caso é verdade mesmo.

O mundo às vezes progride, às vezes avança, feito cachorro. (Houve um tempo, por exemplo, em que inclusão digital era apenas o exame de próstata.) Então o lance é tentar entender esses parangolés, mas não nos esquecermos do seguinte: livro não expira, descarrega ou enguiça. É tecnologia de ponta, camaradas. E não estou mentindo.

Henrique Rodrigues

Nasceu no Rio de Janeiro (RJ) e trabalha na gestão de projetos de incentivo à leitura. É autor de 15 livros, entre romance, poesia, infantis e juvenis. Site: www.henriquerodrigues.net.

Rascunho