🔓 Machado e o soneto esquecido

Refletindo um pouco de forma diacrônica (lá é lá, cá é cá), percebemos que Machado de Assis foi mais fundo nessas redes do que supõe o nosso vão twitter
Machado de Assis por Fabio Abreu
06/02/2021

Por esses dias, um youtuber bastante influente, especialmente entre os jovens, postou que obras clássicas, como as de Machado de Assis, não deveriam ser lidas por adolescentes nas escolas. Todos sabemos que esse assunto é um vespeiro entre alunos, professores e pais, estes quase sempre traumatizados nos anos escolares, e cuja lembrança costuma evocar o doloroso açoite que estava contido nos versos de Camões ou nas páginas de Iracema.

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Penso se Machado vivesse hoje, tendo que lidar com as redes sociais. É um pensamento anacrônico digno de filme bobo. Mesmo porque hoje sabemos como ele foi mestre em descortinar as redes sociais do seu tempo. Refletindo um pouco de forma diacrônica (lá é lá, cá é cá), percebemos que ele foi mais fundo nessas redes do que supõe o nosso vão twitter. As redes sociais analógicas são melhores que as digitais.

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Durante uns bons anos repeti que a única coisa analógica e digital ao mesmo tempo é o exame de próstata. Frase para um Novembro Azul. Mas talvez a raiz da discussão sobre a leitura machadiana, especialmente quando a essa obra contrapõe-se um livro mais contemporâneo e de fácil de fácil digestão, esteja na forma antiga de apresentar o problema: uma coisa ou outra. No mundo da inclusão digital, precisamos pensar uma coisa e outra.

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Minha relação também foi de amor e ódio com esses livros na época escolar. Até hoje tenho a lembrança mágica de ter lido O cachorrinho samba, da Maria José Dupré, lá pelos 7 anos. Na casa não havia luz elétrica e a chama da vela, durante a noite, fazia a minha imaginação se converter numa dessas telas IMAX de cinema. Também não posso abdicar das grandes leituras que descobri enquanto matava aulas para ficar na biblioteca navegando entre quadrinhos e a infinitamente sábia Enciclopédia Delta – mal sabia que, décadas depois, duas dessas bibliotecas iriam me eleger como patrono.

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Mas ao mesmo tempo revelo que, lá pelo então Segundo Grau, hoje Ensino Médio, apenas assinei um trabalho em grupo sobre Vidas secas. Não fui o único, e achei um porre aquilo tudo porque a leitura era apenas para decorar características do Modernismo/Regionalismo, ou qualquer outro ismo que não fazia sentido para mim nem para os demais colegas. Quando li, anos depois, sofrendo com a morte da Beleia, me perguntei, como ainda me pergunto: “mas por que não me disseram que era assim?”.

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Terminei por escrever um artigo sobre essa questão toda, buscando umas referências em pessoas mais qualificadas que eu sobre o assunto. Até que fui reler o Como e por que ler os clássicos universais desde cedo, da Ana Maria Machado. A escritora explica de forma clara como essas obras constituem uma herança a que temos direito. Fiquei feliz ao descobrir que o livro, de 2002, estava autografado por ela. E mais ainda porque ele me ajudou a conversar com ela num programa de televisão há uns dois anos, quando fomos convidados a falar sobre – vejam a coincidência – a importância da leitura nas férias.

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Mas o intrigante foi encontrar na última folha uma anotação minha. Na verdade, apenas um verso solto, provavelmente para um poema que viria a escrever, e que acabou esquecido todo esse tempo: “e tudo não passava de um aquário”.

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O que queria dizer esse enigmático decassílabo heroico? O que desencadeou a metáfora? Foi escrito no ônibus? Na época, estava com ideia fixa nos sonetos, especialmente os de forma fixa mais clássica. Aliás, vejo todo mundo descontruindo sonetos hoje em todos os lugares, mas parece que a maioria não sabe construir um.

De todo modo, o verso me perseguiu por esses dias, e transportei ele de lá para o nosso inusitado mundo de hoje (lá é lá, cá é cá), completando com os outros 13 versos.

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Soneto de reclusão

(O tempo chega torto, vem sem jeito,
Espelho de ampulheta mareada.
É novo esse bolor. Repara, cada
Grãozinho destas horas é refeito

Aquém do lado esquerdo do teu peito,
Feito essa solidão tão povoada
De si, sempre esse nada vezes nada,
No mesmo – e vão – pretérito imperfeito.

Mas vê, no vidro um vulto… Ou mais um engano?
Desperta desse pesadelo humano
Cravado no teu círculo diário!

Destrói esta janela! E então, perplexo,
Verás que a tela e o outro eram um reflexo,
E tudo não passava de um aquário.)

Henrique Rodrigues

Nasceu no Rio de Janeiro (RJ) e trabalha na gestão de projetos de incentivo à leitura. É autor de 15 livros, entre romance, poesia, infantis e juvenis. Site: www.henriquerodrigues.net.

Rascunho