Coisas estranhas têm acontecido à noite enquanto escrevo. Adolescentes em férias antecipadas montam acampamento debaixo da goiabeira da esquina. Três homens conversam sentados em torno a uma mesa, numa sala com luz de lâmpada fluorescente, no oitavo andar de um prédio fantasma. Um show de sucessos de Roberto Carlos sobe do bar a céu aberto na avenida, de gente que deu de usar essa parte do bairro como câmara de ecos das suas bebedeiras num mundo paralelo pós-pandemia. Coisas estranhas como se nada fossem.
Outra noite, durante um daqueles pronunciamentos oficiais que provocam gritaria nas janelas, dois vizinhos se xingavam à distância quando uma mulher, farta daquilo, interveio arrematando o duelo com uma frase. Uma única frase tão imediatamente eficaz que todas as coisas mais estranhas e descaradamente absurdas pareciam de repente explicadas ali. “Ninguém se importa!” — é o que a mulher grita. “Ninguém se importa!”, e, como mágica, estava acabada a guerra dos vizinhos, nessa franca admissão de descaso.
Mas, no meio da madrugada, quando dormem todos os que não se importam, quando não há uma alma viva na avenida, um cão late. Outro cão perto dali responde, depois outro, um pouco mais longe, e outro, e assim vai se adensando um escuro agudo de ganidos que é como o protesto que nos falta, mas, aos cães, não. Então, mais uma vez, tudo dorme. Por pelo menos uma hora antes do primeiro ônibus, tudo dorme. Uns minutos de latidos e ganidos, escuro dentro de escuro, só isso já vale o turno da madrugada. Os cães se importam.