Velha inquietação

É, de fato, uma pergunta frequente que o tradutor faz a si mesmo, ao original e a seu autor. Onde está o sentido que preciso traduzir?
Chacal, um dos ícones da poesia mimeógrafo
01/08/2020

A poesia será sempre o maior obstáculo à tradução. A união quase indissolúvel que se encontra num poema entre forma e substância, entre letra e significado, torna quase impossível a tarefa do tradutor. Só não é impossível porque precisa ser feita. E o imperativo se cumpre, mesmo que de maneira imperfeita.

Também na poesia se encontra muita inspiração para e sobre a tradução. Basta sair e seguir lendo. Seguindo assim, lia outro dia Tudo (e mais um pouco), do Chacal. E foi ali que achei: “onde o sentido está contido? […] onde andará o sentido?/ sentado à beira do abismo? […] no meio do mar à deriva?/ onde o sentido se esquiva?”.

Não parece haver resposta precisa, mas é preciso perguntar. É, de fato, uma pergunta frequente que o tradutor faz a si mesmo, ao original e a seu autor. Onde está o sentido que preciso traduzir? E com que outros sentidos, uma vez identificado aquele, deverei vertê-lo? Estará quase perdido, deixando-se lançar de cima do precipício do esquecimento? Será ainda possível recuperá-lo e fazê-lo reviver?

Onde andará esse sentido tão esquivo? Por aí à deriva, oscilando no meio das ondas, ora visível, ora oculto atrás das cristas mais altas? Será ainda possível resgatá-lo, livrá-lo do afogamento e da irreversível submersão? Resta um talvez, uma dúvida positiva que anima o tradutor a prosseguir sua busca no meio do mar infindo.

Será ainda possível fazer falar a palavra, arrancar-lhe do cerne o significado pendente? Chacal faz um apelo, que ressoa na mente do tradutor: “fala palavra/ fluido flerte/ és versátil volúvel volátil/ diabólica/ fala palavra/ mercúria sombra do nada”. Apelo que faz, inclusive reflexivamente, todo tradutor, procurando arrancar da palavra morta no papel o que lhe resta de seiva viva.

E ela se entrega? Volúvel, flerta mas não cede. Camaleoa, diverte-se em não se deixar verter. Volátil, se lhe evaporam os sentidos tão logo seca a tinta no papel. Travessa, demoníaca, oculta sob sua sombra não o nada, mas a legião prestes a desatar o caos mesmo no texto mais liso.

E ainda assim, o pobre tradutor lhe exige resposta: fala palavra, dize o que escondes debaixo ou dentro de ti. A resposta? O silêncio mais profundo, sepulcral, digno da palavra morta. Qual o remédio? A interpretação ativa e criativa? O enchimento mais ou menos regrado do esqueleto que lhe oferece o original? A aceitação daquilo que lhe assopra, impessoal, a comunidade interpretativa?

As dúvidas te esmagam, tradutor. Mas te consola com a sina que é tua e é de todos, leitores e tradutores. Te conforte a poesia do Chacal: “daí a carcaça cansada voltou de novo/ à velha inquietação: a tradução/ à eterna bagagem: a linguagem”.

Não há escape à inquietação que te incomoda continuamente. É antiga e constante, desconfortável. Mas é também aquilo que te faz avançar em meio aos tormentos e da dúvida. São poucas e mínimas as certezas sobre os sentidos, mas a alternativa — não traduzir — simplesmente não é viável. É sempre preciso traduzir, empurrar para a frente o texto, ressuscitando-o a cada nova leitura.

Na retaguarda, como repositório de todas as possibilidades, carregas algo que é coletivo mas que também é muito teu: tua linguagem, irrepetível, aquela que conferirá à escritura característica única e idiossincraticamente tua. Será tua contribuição à saga universal do texto. Com um toque de eternidade.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho