Uma leitura etnográfica: um sistema de crenças
Nas manifestações antipetistas de março de 2015, os seguidores mais afoitos do autor de A fórmula para enlouquecer o mundo (2014) lançaram uma frase rapidamente convertida em amuleto da nova direita: “Olavo tem razão”. Grito de guerra estampado em camisetas, impresso em cartazes, repetido em uníssono por entusiasmados provavelmente não leitores que conhecem a doutrina olavista sobretudo através das redes sociais. A frase-amuleto conheceu sua mais completa tradução em várias canções de uma tendência tão improvável quanto o hibridismo de um rap suavizado pela linha melódica típica do gospel, o ritmo ligeiro de uma marchinha de carnaval e mesmo a atmosfera bélica de um heavy metal.
Escute com atenção o rap de Luiz, o Visitante, O velho Olavo tem razão, antes de continuar a leitura.[1]
O vídeo principia com aproximadamente dez segundos de uma fala característica do vernáculo olavista: “Eu já disse que essa é a cabeça desses filhas da puta. Eu já falei vinte anos atrás. Não há saco para isso: é muita burrice; levam muito tempo para entender o óbvio. Porra: não dá!”.
Oráculo destemperado, as ideias de Olavo de Carvalho são apresentadas numa série de clichês; síntese apressada dos princípios defendidos pela nova direita no debate público: nega-se o racismo, denuncia-se a doutrinação nas escolas, alveja-se o feminismo, anuncia-se o caos com a eventual legalização da maconha. Acredite se quiser, a letra expõe com detalhes um sistema de crenças que chegou ao poder com Jair Messias Bolsonaro.
Você me dirá se exagero:
Os livros que vocês tanto mandam a gente ler
Não leram, ou pularam a página pra não ver
Milhões que foram mortos vítimas do comunismo
De fome; veja que sem sentido é seu vitimismo
MEC manipula livros, porque a verdade dói
Meu livro na 8° série, José Dirceu era herói
Quem mais pode te ensinar do que alguém que esteve lá?
Olavo de Carvalho… Ele pode te explicar!
(grifo meu)
Eis a expressão acabada da ideia de doutrinação; eixo articulador da mentalidade bolsonarista, que legitima para seus seguidores a sistemática destruição das instituições públicas de ensino e de pesquisa.
Denúncias reiteradas no ritmo do rap; agora, é a vez da voz melodiosa de Talita Caldas introduzir, na toada de um gospel, a dimensão profética:
Deus abençoou
Essa ‘luta de paz’
O velho Olavo ensinou
E o resto a gente quem faz
No caso de uma luta de paz, a fim de domesticar o oximoro, melhor mesmo substituir o Novo pelo Velho Testamento, mimetizando o gesto de largo alcance de algumas igrejas neopentecostais. Afinal, na elaboração de um projeto político, Davi e Salomão são modelos mais adequados do que Jesus Cristo. No rap-gospel, como Olavo de Carvalho é apresentado como um profeta digno do Velho Testamento não surpreende a ousada aproximação:
Olavo tinha avisado, isso me lembrou Noé
O dilúvio ‘tá’ pra chegar, falta de aviso não é
Antecipação de um pacto inesperado que efetivamente se concretizou na eleição de 2018 por meio da aliança entre o bolsonarismo e as igrejas neopentecostais.
O heavy metal Olavo tem razão[2], do grupo REAC, recorre a expediente similar: o vídeo principia com o eco dos panelaços celebrados por Olavo de Carvalho, seguido de uma citação extraída de O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota (2013), e que naturalmente reza a ladainha da decadência da atividade intelectual no Brasil, cuja regeneração, claro está, depende da receita olavista; aliás, aviada sem parcimônia na letra da música.
(Receita: outra forma de definir o sistema de crenças olavista.)
Eis a prescrição: em primeiro lugar, denunciar o modelo hegemônico, esquerdista, e, quem duvida?, gramsciano. Instrumentação pesada, timbre raivoso, identifica-se o inimigo:
Ler Carta Capital
gostar de marginal
é pré-requisito
pra ser intelectual
(…)
Pra que ficar sentado
que nem burro esperando
se bem aí do seu lado
tem alguém que tá esquerdando
Esquerdando! Gerúndio bárbaro, mas que possui algum encanto, pois sintetiza a tradução popular da matriz narrativa anti-comunista, obsessão do “Noé brasileiro”.
De fato, o anti-intelectualismo é a marca d’água do sistema de crenças olavista e o ressentimento que o move anda tão à flor da pele que tornaria constrangedor qualquer esboço de análise psicológica. Ao mesmo tempo, o impulso é um tanto esquizofrênico, já que se trata de uma espécie peculiar de anti-intelectualismo, que lança mão de farta bibliografia, ainda que composta de títulos exóticos e em geral obscuros.
(Mais ou menos como sugerir que Theodor W. Adorno compôs as músicas dos Beatles com base na leitura de um polêmico jornalista holandês, Robin Ruiter, autor de livros singulares como, por exemplo, O Anticristo — Poder oculto por trás da Nova Ordem Mundial.)
O restante da letra do heavy metal é uma autêntica resenha musical de O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota, com destaque para as mazelas da agenda progressista, que, como duvidá-lo?, ameaça levar o país ao caos.
Em relação ao bolsonarismo, é preciso passar da caricatura à caracterização e, em lugar de reduzir a análise à crítica óbvia do caráter reacionário da letra, deve-se mapear a virtual onipresença da pregação de Olavo de Carvalho. O seu sistema de crenças tornou-se a koiné da nova direita:
Viver de coitadismo
é empreendedorismo
pra ser canonizado
é só ter pós em terrorismo
Acrescente dois ou três palavrões, não se esqueça da obsessão anal, e poderíamos estar lendo um post no Facebook do autor de O império mundial da burla (2016). Por fim, o refrão que encerra a canção também é uma rima pobre:
Olavo tem razão
Olavo tem razão
é tudo picareta
roubando a nação
E como se desejasse confirmar a inteligência do mestre, no final do vídeo, entre repetições infinitas do laborioso refrão, surge a voz do próprio autor durante aproximadamente 40 segundos. Os instantes finais são fiéis à agônica oratória olavista: “Ora, puta que pariu! O que esses caras têm na cabeça, meu Deus do céu? Larga do meu saco — porra!”
Luiz Trevisani e Eder Borges contribuíram ao gênero nascente com uma despretensiosa marchinha de carnaval, Olavo tem razão[3]. O vídeo da canção se inicia com uma imagem do mestre, sucedida pela entrada em cena do ritmo carnavalesco que embala a marchinha. A primeira estrofe esclarece o que fazer para alcançar o nirvana das ideias:
Chegou a vez de você conhecer
A obra de um patriota
É o mínimo que você precisa saber
Para não ser um idiota
A letra, como em toda marchinha, é singela e bem-humorada. Luiz Trevisani e Eder Borges formaram a banda Os Reaças em Curitiba, onde residem, e se encontraram pela primeira vez num grupo de ativismo político de direita. Os dois são ainda autores de um rock que foi adotado como autêntico hino do processo que levou à deposição da então presidente Dilma Rousseff, intitulado criativamente Impeachment.[4] Seu refrão foi cantado por uma multidão na Avenida Paulista e em todo o país — e não é difícil imaginar o êxtase coletivo da legião de pessoas ao entoar o final do segundo verso:
Impeachment — não tem como fugir
Impeachment — pede pra sair
Impeachment — pra salvar a nação
Impeachment — está na constituição
Pede pra sair — frase icônica que se incorporou à linguagem popular. Tropa de elite de um só homem, Olavo de Carvalho desempenhou, com rara eficácia, o papel de artífice de um sistema de crenças, cujo caráter binário, maniqueísta mesmo, favoreceu a adesão apaixonada, irracional até, de um número sempre crescente de adeptos ao longo de décadas de pregação. Seu resultado foi a emergência do efeito Olavo de Carvalho, isto é, a difusão de uma linguagem própria e vagamente conceitual; a reconstrução revisionista da história da ditadura militar; a identificação do comunismo como inimigo eterno a ser eliminado uma e outra vez (e sempre de novo); a presunção de uma ideia bolorenta de alta cultura; a curiosa pretensão filosofante; a divertida veneração pelo estudo de um latim sem declinações e pelo desconhecimento metódico de um grego, grego de fato; a elaboração de labirínticas teorias conspiratórias de dominação planetária; a adesão iniciática a um conjunto de valores incoerentes; and last but not least, a utilização metódica da verve bocagiana, aqui reduzida a três ou quatro palavrões e a dois verbos — bem entendido: ir e tomar.
Não falemos em filosofia! Contudo, enquanto um sistema de crenças, a contribuição de Olavo de Carvalho não pode ser ignorada; caso contrário, dificilmente entenderemos o Brasil contemporâneo, especialmente a fidelidade canina ao bolsonarismo, mesmo diante de evidências claras de seu fracasso. Ora, como se trata de um sistema de crenças, uma vez internalizado, ele tende a se tornar imune a contestações externas, pois, como mecanismo de defesa, entra em cena o fenômeno da dissonância cognitiva.
O sistema de crenças olavista foi apresentado ao grande público nas manifestações de 2015 e de 2016 no lema-amuleto “Olavo tem razão”; conheceu uma tradução popular no subgênero musical Olavo tem razão, e ameaça colonizar o audiovisual por meio do filme Olavo tem razão, anunciado pelos diretores José Otavio Gaó e Mauro Ventura. Por fim, esse sistema de crenças chegou ao poder por meio do casamento com o bolsonarismo.
NOTAS
[1] Eis o link para a canção: https://www.youtube.com/watch?v=nCQowNfA_1g.
[2] Link da música: https://www.youtube.com/watch?v=Ah8ghfl5aaE
[3] Eis o link do vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=fDwpJkn8lcc.
[4] Eis o link do vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=qadeecuNaxM.