Braulio Tavares, em seu ensaio Tradição popular e recriação no Auto da Compadecida, faz interessante reflexão sobre o processo inventivo do cordelista, do poeta, do dramaturgo popular. Aponta que, para esses autores, “recontar uma história alheia […] é torná-la sua, porque parece existir na cultura popular a noção de que a história, uma vez contada, torna-se patrimônio universal e transfere-se para o domínio público”.
A questão de autoria/autoridade é um dos temas centrais da tradução. As palavras de Tavares ajudam a jogar um pouco mais de luz sobre esse problema tão complexo.
O tradutor, como o poeta e o dramaturgo popular, reconta histórias, embora nem sempre as tome como suas — pelo menos não mais hoje. Lá atrás, sim, era comum o tradutor apropriar-se desabridamente do original, para erigir-se como seu autor ou, mais propriamente, como aquele que deu o texto a uma nova luz. Não necessariamente se tratava de plágio, pois o próprio conceito de autoria não estava consolidado, inclusive juridicamente, como nos dias atuais.
A tradução, assim, anteriormente à consolidação da soberania do autor, tendia a ser mais livre — e mais “autoral” —, usando o original muito mais como base de criação do que como texto a ser preservado e reproduzido fielmente. Um processo mais similar ao que faz, no dizer de Braulio Tavares, o escritor popular: “autoral, apenas, é a forma textual dada à história por cada um que a reescreveu e reescreverá”. Trata-se da corrente de textos que deságua numa publicação/tradução devidamente autorizada.
Tavares assinala que Ariano Suassuna, na construção de seu Auto da Compadecida, trilhou exatamente esse caminho, bebendo de fontes diversas, inclusive da literatura de cordel. O processo de apropriação e recriação lançou mão de enredos e personagens tradicionais e, transformando-os, deu-lhes vida nova, conferindo forte traço autoral ao texto publicado. Como alinhavou Braulio Tavares, Suassuna copiou, mas transformando; reutilizou, mas dando sangue novo.
Na tradução de hoje, ligados todos os holofotes antiplágio, ao reescritor estão mais restritos os caminhos da transformação e da inscrição de traços autorais. O original deve ser preservado, assim como o arbítrio do autor. O tradutor não pode usar livremente o original autoral para construir seu novo texto, pelo menos não sem lhe dar os devidos créditos. Da mesma forma, não pode retalhar nem rechear o original. Há hoje claros limites à tarefa do tradutor.
Ainda assim, o tradutor não pode escapar à sina de transformar o texto, de se transformar em mais um operador — e de grande relevância — na longa sequência de interpretações que ideias e textos vão sofrendo ao longo do tempo e do espaço. Não tem como evitar ir costurando no texto suas próprias impressões, ir vestindo no texto dos outros suas versões pessoais.
Novamente nas palavras de Tavares, cabe ao poeta e dramaturgo popular — e agrego eu, ao tradutor — “na medida do possível, tentar escrever algo tão novo e tão vivo quanto o original; procurar fazer da cópia uma obra que o autor do original pudesse apreciar com prazer e aplaudir com orgulho”.
Logo após a finalização — por parte de autor ou tradutor —, e em especial depois da publicação, o texto se desfilia do escritor e cai numa corrente mais ou menos turbulenta e de direção incerta, que o joga nos braços do leitor. A quem, no final das contas, cabe a interpretação provisoriamente definitiva.