Que segredos esconde a boca de uma mulher? Quando as luzes do globo riscavam a parede, eu não sabia. Era um menino dentro de uma roupa nova, de um sapato apertado, herança do irmão, à espera de uma descoberta. A escuridão revestia de segurança minha timidez. Um anfíbio entre o deserto e o mar. As luzinhas corriam em torno de nós. Envolviam-nos. O som alto abafava nossos segredos infantis. Ao menor aceno, eles se esfarelam, se espraiam pelas rachaduras das brincadeiras e transformam-se em zombaria. Segredos infantis não criam pêlos, não engrossam a voz.
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Esperávamos as frestas na fila da comunhão para prostrar-nos atrás das meninas. A proximidade e o calor da pele guiavam-nos até o altar, onde o corpo de Cristo nos esperava. A hóstia a derreter, pregada no céu da boca; Cristo pregado a nos perdoar os pecados ainda não concebidos. Nossos olhos fincados nos seios que insinuavam pequenas curvas sob a camiseta. Elas, nosso inferno, nosso paraíso. Nós, brasas a correr pelo corpo. Aqueles corpos eram-nos impossíveis. Aliviava-nos a certeza de que eram intocáveis. Inacessíveis sereias a nadar de joelhos diante do altar e de nossos olhos arregalados. As mães tentavam (em vão) colocar-nos na retidão da fé. Não tinha jeito. Éramos trens o tempo todo a descarrilar. Uns perdidos a pensar em bocas e num leve toque — por mais suave que fosse — em uma parte qualquer de um corpo estranho ao nosso.
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Nos sábados à noite, as festinhas aconteciam no pavilhão atrás da igreja. Uma linha invisível separava o céu do inferno. Gostávamos mais do inferno. No céu, tínhamos a salvação. Buscávamos a perdição. Ali, em companhia de músicas que não entendia, balançava o corpo com o gosto da hóstia misturada ao de coca-cola. Profanar a fé era-me indiferente, para desespero de minha mãe. Uma dor incômoda alojava-se no pescoço durante todo o domingo devido aos movimentos canhestros da dança. Um sinal, talvez, de que a vida adulta não seria nada fácil. Dançava ao som dos mais insanos grupos de rock. Nomes que eu não sabia pronunciar, significados e letras que eu não compreendia. Todos diziam que idolatravam o demônio. Eu não sabia inglês. A ignorância amenizava meus pecados. Nunca aprendi inglês.
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Fazer pão em casa requer arte e paciência. As mãos calosas da mãe sovavam bem a massa. Espalhava-a sobre a mesa de fórmica, polvilhada com farinha de trigo. Esticava, puxava, recolhia. Usava toda a sua força para nos alimentar. Ao fim, um dos filhos tinha de lhe ajudar a arrematar o trabalho: tocar o cilindro — uma maquineta provida de manivela e dois rolos. A massa, esmagada várias vezes, ganhava uma lisura gostosa. Eu, sempre a ajudá-la. Tocava o cilindro com as mesmas mãos que perscrutavam o corpo às escondidas. Numa tarde, já no fim do trabalho, quando o cansaço destruía-me as forças, a mãe disse: “Mas hoje é seu aniversário, meu filho”. Eu respondi: “Isso não tem a menor importância; temos de terminar o pão”. Nunca gostei de aniversário. Cortar lenha era outra necessidade. Cortada, alimentaria o fogão, para cujas profundezas o pão era levado. Cristo alimentava seus discípulos com pão e vinho. A mãe dava-nos pão e quissuco de uva. A trabalheira toda tinha uma recompensa: nas manhãs de domingo, sobre a geladeira, esperava-me bolo de cenoura com cobertura de chocolate.
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Chegava à festinha com uma bandeja de bolo de cenoura. Todos riam. As meninas tinham de levar doces; os meninos, bebidas. Faltava-me dinheiro para a bebida. Os bolos da mãe garantiam a entrada, entre risos e olhares de escárnio. Deus, ali ao lado, perdoar-lhes-ia. Éramos, após a missa, uma procissão de formigas a carregar nas costas garrafas e guloseimas em direção ao inferno. A música ensurdecia-nos, abafava os cânticos de outrora, soterrava a nossa fé. Balançava o frágil corpo ao lado do amigo; os movimentos bruscos renderiam alguma dor durante todo o domingo. Esquecíamos que éramos crianças. Os maiores zombavam, jogavam-nos para os lados. Ciscos varridos pelo vento. Após o rock, as músicas lentas arrastavam corpos para o meio do salão. O globo girava lentamente, projetava pequenas luzes na parede. Eu também não entendia aquelas letras, seus significados. Era ignorante em qualquer velocidade.
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Quando Antônia chegou, animei-me. Era minha vez. Todos já a tinham beijado. Arrastavam-na para o centro do salão. Luzinhas na parede. Corpos juntos. O pescoço (ainda sem dor) virava para o lado em busca da boca que os saciaria. Depois, cada corpo para um canto à espera da música diabólica. Naquela noite, eu seria o primeiro a tirá-la para dançar. Era a última formiga da fila. Meu primeiro beijo. Não consegui me concentrar nas canções que me entortavam o corpo; dancei ainda mais desengonçado — um albatroz de asa quebrada tentando chegar à praia. Quando o inferno serenou os ânimos, a música lenta levou-me ao encontro de Antônia — o mesmo nome de uma tia de minha mãe. O castigo seria maior? Peguei-a pela mão, enlacei-a pela cintura. Tremia diante daquela menina magra e frágil. Dois passarinhos a equilibrar-se sobre uma rama de trigo. O corpo de Antônia recendia um cheiro de piedade. Aninhei-me nela; esqueci-me do gosto da hóstia; da mão imensa do padre a entregar-me o corpo de Cristo. Desejava a boca de Antônia. O que eu encontraria naqueles lábios? Saberia acolhê-los com a delicadeza necessária da entrega? Meus lugares-comuns corriam pelo corpo em formação. Apertei-a com mais força. Era o sinal. Ela recostou o rosto em meu ombro. Absorveu meus medos. Era uma esponja a secar-me. Da sua boca, um calor arrepiava-me a carne. Sentia-lhe os ossos na ponta dos dedos. Nos cantos, avistava dentes a devorar-me, zombavam de mim. Fechei os olhos e entreguei-me à inocência de Antônia, à lentidão da música. Meus pés não tocavam o chão de cimento bruto. Nada mais existia: nem Deus, nem o diabo. Apenas dois passarinhos a catar sementes na imensidão. Aninhei-me ainda mais na quentura daquele corpo que a mim se oferecia; não precisava cortar lenha; não tinha de tocar o cilindro; ela não sabia a data do meu aniversário; e me entregava a boca de gosto infantil, sem remorso, pecado ou arrependimento.