Traduzir contra pano de fundo

A carga cultural que o tradutor traz na mente afeta profundamente sua maneira de ler e, conseqüentemente, sua maneira de traduzir
Walter Benjamin, autor de “Passagens”
01/01/2013

A carga cultural que o tradutor traz na mente afeta profundamente sua maneira de ler e, conseqüentemente, sua maneira de traduzir. Não se trata de algo que se possa controlar objetivamente. Para o tradutor, é um dado do texto. Está ali dentro, claro como luz cruzando cristal.

O “background” não deve ser desprezado no processo tradutório. É ele o responsável, em parte, ao menos, pela admirável confusão que acomete a disseminação do texto e suas traduções. É contra o pano de fundo que objetos e palavras ganham contornos que permitem apreender, interpretar e traduzir.

A idéia de traduzir no vazio, ou contra o vazio, é a mesma que alimenta a utopia da tradução literal: a tradução que independe de contexto, que se prende apenas à suposta compreensão precisa e objetiva de cada palavra, cada frase. Traduzir é conseqüência simples.

O pano de fundo é tão rico e diverso quanto são os tradutores, mas há padrões básicos que nos permitem compreender a tradução de conjuntos cultura-época distintos. Traduzir é também compreender a sua cultura-época. Por isso se deve enfatizar, sempre, a bagagem do tradutor como elemento definidor da qualidade de seu texto. Não é algo que se possa medir de maneira completamente objetiva, pois se oculta detrás e em meio a camadas e camadas de informação.

Queria poder medir e definir de maneira totalmente precisa o “background”. Seria, talvez, a chave disso que se pensa poder descobrir um dia: a teoria geral da tradução. Mal arranhamos a superfície em busca de verdades concretas sobre o processo tradutório. Mas especulamos, especulamos profusamente…

Arte maldita e mal compreendida, a tradução navega e navegará contra o mesmo pano de fundo. Como ofício marginal. Coisa que se faz nas horas vagas, sem grande compromisso. Arte-ofício de diletantes, não de profissionais. E, olha!, posso dizer que militei…

Ora, se a tradução depende do pano de fundo, que dizer da tradução mesma desse pano de fundo, como forma de elucidar o ato tradutório? Possível seria? Pôr o pano de fundo a descoberto — revelado, nos daria a solução para enigma que nos oprime desde os primórdios. Essa segunda profissão mais antiga que não deixa nunca de escandalizar…

Será tudo traduzível, mesmo o pano de fundo que nos permite apreender, interpretar e traduzir? Será o “background” uma categoria intraduzível de informação, por situar-se em camada demasiado profunda — e portanto inacessível ao processo lógico que supõe a tradução? Algo como a estrutura profunda da qual decorrem nossas gramáticas?

Será o pano de fundo assimilável — por sua intraduzibilidade, embora com diferente função — ao núcleo do sentido, ao inapresentável e, por isso, “não significável” (como diria Derrida), o qual, paradoxalmente, precisa ser traduzido? Ou será assimilável — sempre em termos de intraduzibilidade — ao “núcleo essencial” de Walter Benjamin — o que não pode ser traduzido, mas que representa o objetivo último do bom original — e, talvez, da boa tradução.

A relação do núcleo com o pano de fundo — a relação entre o sentido em seu sentido mais profundo e aquilo que lhe dá sentido — é algo que, resolvido, poderia dar direção mais clara à busca de balizas para o processo tradutório. Balizas, bóias, tábuas de salvação…

Traduzível ou não, identificável ou não, assimilável ou não, o pano de fundo não apenas guia os processos de apreensão, interpretação e tradução, mas representa o fio condutor da linguagem e das línguas. Aquilo que dá liga e continuidade — que permite a passagem de uma língua a outra, que significa o elo visível entre duas línguas presentes na mesma linha vertical de uma árvore lingüístico-genealógica.

Pano de fundo, como sofisticação ou mera mistificação. Como pura tradução.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho