Desabituei-me dos relógios. Agora vou reconhecendo as horas pelo céu, pelo sol, pelos barulhos do bairro e dos vizinhos, pelos tons de dourado ou rosa nas fachadas dos prédios mais distantes, pelos sabiás, os morcegos, e o som de alavanca do elevador parando de andar em andar para a entrega do jornal do dia.
Ainda vejo de memória um relógio digital que tive, em forma de explosivo. A adolescente que fui achava aquilo de um mau gosto até certo ponto instrutivo. Havia o relógio de chão da casa dos avós, que badalava solene nas horas cheias, fizesse dia ou noite, sempre na sombra, como se falasse sozinho. E os relógios de pulso, que eu mesma usei por um tempo. Já não sei a partir de que mar alto esse hábito morreu ou foi morrendo, e os dias começaram a correr incivilizados até que as antenas do corpo alcançassem alguma disciplina.
Os sabiás me dão a badalada das três da madrugada. Os sabiás mais um rasgo arroxeado atravessando o horizonte por trás dos prédios me dão as seis da manhã. Os hábitos dos outros me dão as horas, e os hábitos da luz, da sua poça espraiada em frente à porta de entrada até sua hora langorosa através das flores do noren na porta do banheiro. E assim as antenas do corpo vão aprendendo, nessas mínimas consultas.
Na ilha de Sommarøy, que vive o sol da meia-noite, as pessoas quebraram seus relógios ou os abandonaram na ponte que liga ao continente. Correu o mundo a notícia de que a ilha poderia se tornar a primeira “zona livre de tempo”. Ainda que tudo tenha acabado numa estratégia de propaganda turística para o verão prolongado, cai bem saborear essas palavras assim reunidas, como num título de livro de poesia. E como nem toda poesia é impossível neste mundo, alguma pode ser que tome o nosso corpo e alcance a zona livre. Dos relógios, ao menos.