🔓 Visão

A pintura passou os últimos dias guardada, para vir aflorar agora, no primeiro sábado do novo ano. Sim, eu vi Nossa Senhora da Piedade em carne e osso
Pietà, de Giovanni Bellini
02/01/2021

Para Tita

Outro dia tive uma visão. Estava bem na minha frente e era Nossa Senhora da Piedade. Sei que estou arriscando, até mesmo facilitando ser mal interpretada, confundida com esses impostores brincalhões ou lunáticos, que jogam com a fé alheia, que veem Jesus na goiabeira ou Nossa Senhora na azinheira. Mas não, não era uma aparição, não tinha nenhum halo de luz nem nada de etéreo ou milagroso. Era uma mulher de carne e osso.

Só o que sei dessa mulher, em tudo mais desconhecida para mim, é que ela amava a pessoa que jazia ali, naquela sala com gente contrita reunida. Vínhamos com botões de rosa, nos cumprimentávamos à distância, vínhamos com pêsames e olhos baixos, enquanto a mulher ia sem formalidades até a pessoa que ela amava e lhe acarinhava a cabeça sob o tule.

Cada um teria seu discurso ou sua homenagem para juntar à cerimônia, éramos uma sala de palavras consternadas, palavras compungidas. Mas aquela mulher prescindia de palavras. Conhecia da porta para dentro a pessoa que nós homenageávamos. Era quem lhe acompanhava cotidianamente, quem lhe preparava o café quente indispensável, quem lhe cuidava no refúgio da paz doméstica. Seria a figura em primeiro plano numa pintura de interior com pão e frutas na luz transversal das três da tarde.

Da porta de casa para fora, naquela sala cheia de gente, a mulher também compunha um quadro, que era um quadro santo, mas um quadro santo sem liturgia, com intimidade de mãe no gesto de cuidar. A pintura durou um momento, depois se escondeu, plantou-se em mim. Passou os últimos dias do ano de 2020 aqui guardada, para vir aflorar agora, no primeiro sábado do novo ano. Sim, eu vi Nossa Senhora da Piedade em carne e osso.

Mariana Ianelli

Nasceu em São Paulo em 1979. Formada em jornalismo, mestre em literatura e crítica literária, estreou na poesia em 1999 com Trajetória de antes. Em 2013, estreou na crônica com Breves anotações sobre um tigre. É também autora de dois livros infantis. Desde agosto de 2018, edita a página Poesia Brasileira no Rascunho. Escreve quinzenalmente, aos sábados, na revista digital de crônicas Rubem.

Rascunho