šŸ”“ Uma passada de manteiga faz toda diferenƧa

A obsessiva busca da pƔgina perfeita para entregar aos leitores um texto mais fluido e saboroso
Ilustração: FP Rodrigues
10/04/2023

Uma das vantagens de editar o próprio livro é que você pode dar vazão às suas manias, satisfazer suas obsessões e inventar uns rituais absurdos.

Eu, por exemplo, estou agora finalizando um romance (Um cara como outro qualquer) e estou cismado com as quebras de palavras no fim da folha.

Explico melhor:

Sabe aquela última linha da pÔgina ímpar que vai ser virada? Pois bem, acho muito ruim quando uma palavra termina, ou melhor, não termina, e hÔ um hífen indicando que ela continua depois da virada.

Por exemplo, digamos que a derradeira linha tenha a frase ā€œVocĆŖ roubou meu co-ā€œ. Nesse segundo em que levo para virar a pĆ”gina, fico imaginando se esse ā€œcoā€ serĆ” seguido do tradicional ā€œraçãoā€, do prosaico ā€œbertorā€, de um esvoaƧante ā€œlibriā€ ou do cobiƧoso ā€œfreā€.

A sĆ­laba fica parada no ar. Ficamos um instante com aquele biquinho bobo na boca. E o texto nĆ£o foi feito para ter esse suspense. PorĆ©m, por conta de uma diagramação descuidada, isso pode acontecer um monte de vezes num livro. Para mim, acaba sendo um tropeƧo na leitura. ƀs vezes atĆ© tenho que desvirar a pĆ”gina e reler a Ćŗltima frase para entender direito.

Então decidi tirar ou acrescentar palavras para que isso não ocorresse, o que é relativamente fÔcil. Mas aí pensei: por que não ser mais radical e tentar acabar o parÔgrafo na pÔgina? Afinal, também é chato ter que segurar uma ideia durante a virada de folha. Buscar essa inteireza, essa não-quebra, seria como passar uma manteiga no texto, deixando-o mais fluido, escorreito e saboroso.

Então eu, o outro autor do livro (Marcus Aurelius Pimenta) e o designer grÔfico (Ivo Minkovicius) estamos fazendo um mutirão para tentar chegar a essa pÔgina perfeita e suave, sem viúvas ou forcas, sem divórcios de sílabas ou ideias, sem trancos nem barrancos.

Por conta disso, eu e Marcus temos que fazer muito cortes ou acréscimos, às vezes de linhas inteiras. Nossa regra é que não podemos piorar o texto jamais. E assim acabamos ficando muito tempo numa pÔgina para deixÔ-la nos trinques.

Ɖ curioso como a restrição fĆ­sica pode melhorar um texto. Ɖ mais ou menos o que acontece quando se faz um soneto: vocĆŖ precisa manter aquela mĆ©trica e assim descobre novas frases, novas rimas, novas ideias etc…

EstÔ sendo uma experiência interessante e espero que os leitores percebam, mesmo que inconscientemente, que o livro fica mais leve, ligeiro, legível. Mas, é claro, talvez este apuro seja possível apenas numa euditora, onde os escritores também são os editores e revisores do texto, e têm uma cumplicidade com quem faz a diagramação.

Numa grande empresa, que faz dezenas de livros por mĆŖs, me parece difĆ­cil ter essa ā€œfrescuraā€ (frescura estĆ” entre aspas, logo, Ć© ironia. Hoje em dia hĆ” que avisar, senĆ£o…).

Enfim, não é uma revolução, apenas uma passada de manteiga no texto. Mas, como diz Maneco, o filósofo-chapeiro da padaria onde como meu pão na chapa matinal, uma passada extra de manteiga faz toda diferença.

JosƩ Roberto Torero

Escritor e roteirista, Torero nasceu em Santos (SP), em 1963. Ɖ autor deĀ O chalaƧa (prĆŖmio Jabuti na categoria romance em 1995) e Os vermes, entre outros. TambĆ©m Ć© autor de livros de nĆ£o ficção e de literatura infantojuvenil. Ao lado de Paulo Halm, assinou o roteiro do longa-metragem Pequeno dicionĆ”rio amoroso.

Rascunho