Uma das vantagens de editar o próprio livro é que você pode dar vazão às suas manias, satisfazer suas obsessões e inventar uns rituais absurdos.
Eu, por exemplo, estou agora finalizando um romance (Um cara como outro qualquer) e estou cismado com as quebras de palavras no fim da folha.
Explico melhor:
Sabe aquela Ćŗltima linha da pĆ”gina Ćmpar que vai ser virada? Pois bem, acho muito ruim quando uma palavra termina, ou melhor, nĆ£o termina, e hĆ” um hĆfen indicando que ela continua depois da virada.
Por exemplo, digamos que a derradeira linha tenha a frase āVocĆŖ roubou meu co-ā. Nesse segundo em que levo para virar a pĆ”gina, fico imaginando se esse ācoā serĆ” seguido do tradicional āraçãoā, do prosaico ābertorā, de um esvoaƧante ālibriā ou do cobiƧoso āfreā.
A sĆlaba fica parada no ar. Ficamos um instante com aquele biquinho bobo na boca. E o texto nĆ£o foi feito para ter esse suspense. PorĆ©m, por conta de uma diagramação descuidada, isso pode acontecer um monte de vezes num livro. Para mim, acaba sendo um tropeƧo na leitura. Ćs vezes atĆ© tenho que desvirar a pĆ”gina e reler a Ćŗltima frase para entender direito.
Então decidi tirar ou acrescentar palavras para que isso não ocorresse, o que é relativamente fÔcil. Mas aà pensei: por que não ser mais radical e tentar acabar o parÔgrafo na pÔgina? Afinal, também é chato ter que segurar uma ideia durante a virada de folha. Buscar essa inteireza, essa não-quebra, seria como passar uma manteiga no texto, deixando-o mais fluido, escorreito e saboroso.
EntĆ£o eu, o outro autor do livro (Marcus Aurelius Pimenta) e o designer grĆ”fico (Ivo Minkovicius) estamos fazendo um mutirĆ£o para tentar chegar a essa pĆ”gina perfeita e suave, sem viĆŗvas ou forcas, sem divórcios de sĆlabas ou ideias, sem trancos nem barrancos.
Por conta disso, eu e Marcus temos que fazer muito cortes ou acréscimos, às vezes de linhas inteiras. Nossa regra é que não podemos piorar o texto jamais. E assim acabamos ficando muito tempo numa pÔgina para deixÔ-la nos trinques.
Ć curioso como a restrição fĆsica pode melhorar um texto. Ć mais ou menos o que acontece quando se faz um soneto: vocĆŖ precisa manter aquela mĆ©trica e assim descobre novas frases, novas rimas, novas ideias etc…
EstĆ” sendo uma experiĆŖncia interessante e espero que os leitores percebam, mesmo que inconscientemente, que o livro fica mais leve, ligeiro, legĆvel. Mas, Ć© claro, talvez este apuro seja possĆvel apenas numa euditora, onde os escritores tambĆ©m sĆ£o os editores e revisores do texto, e tĆŖm uma cumplicidade com quem faz a diagramação.
Numa grande empresa, que faz dezenas de livros por mĆŖs, me parece difĆcil ter essa āfrescuraā (frescura estĆ” entre aspas, logo, Ć© ironia. Hoje em dia hĆ” que avisar, senĆ£o…).
Enfim, não é uma revolução, apenas uma passada de manteiga no texto. Mas, como diz Maneco, o filósofo-chapeiro da padaria onde como meu pão na chapa matinal, uma passada extra de manteiga faz toda diferença.