🔓 Um dia raro

A delicadeza de uma amizade e uma maneira de construir rotas de fuga para sobreviver ao caos
Ilustração: Eduardo Mussi
02/04/2023

Para a minha amiga Bárbara

Não existe palavra que melhor defina uma amizade do que acolhimento.  Em tempos tão ásperos (alguma vez já vivemos sem aspereza?) ser acolhida por alguém é uma espécie de aleluia. Outro dia eu chegava muito cansada a uma cidade onde teria que tratar de um assunto emocional delicado. Eu já vinha de batalhas locais e, portanto, levava nas mãos meu coração tão exausto quanto o resto do corpo. Fui almoçar com uma amiga. Logo depois, vendo o meu cansaço, ela me diz: vamos lá pra casa pra você descansar. Há quanto tempo eu não recebia um convite tão simples, tão acolhedor, tão sincero — vem descansar.

Cheguei à casa dela, e a primeira imagem foi a de um jardim suspenso. Uma espécie de hall a céu aberto com vários vasinhos de plantas diversas me recebia: seja bem-vinda, pareciam dizer. Neste momento, quem não está moído como eu pode pensar que é um exagero dizer que plantas fazem as honras de uma casa. Mas quem já esteve torcido por dentro vai saber do que estou falando e me perdoará.

Entrei e me deparei com uma luz e um silêncio que me conduziram ao descanso pleno. Ela me ofereceu a cama para eu espalhar minhas pernas, enquanto pegava um de seus infinitos livros de João Carrascoza para ler no sofá. Foi assim que adormeci profundamente por exatos 30 minutos — era o tempo que eu tinha antes de sair para meu compromisso na cidade. Quando acordei, me sentei no sofá e fiquei ali com ela conversando um pouco. O silêncio era de uma delicadeza imensa. Uma janela grande na sala fazia a corrente de vento suave com a porta igualmente aberta que dava para o hall do jardim suspenso. Falamos sobre o livro Dias raros, de Carrascoza, que ela estava lendo. Fui eu que apresentei a ela o autor. Passamos a dividir essa paixão por um escritor de delicados essenciais, para quem a vida é repleta de farelos brilhantes — a singeleza da vida pequena.

Depois me levantei e cruzei a sala de volta à rua, levando comigo a suavidade daquele espaço, o acolhimento daquela amizade e a certeza de que a raridade da vida consiste em momentos eternos como aqueles. Quando cheguei em casa, me deparando novamente com os problemas de sempre, pensei que a gente precisa criar mentalmente rotas de fuga para sobreviver ao caos. Recriar cenários de tranquilidade com plantas, luminosidade, boa leitura, conversa amiga e uma deliciosa brisa da tarde é uma forma de fugir sem fugir; permanecer onde precisamos estar por motivos diversos, para travar nossas batalhas diárias, mas com o coração desafogado pela vivência de um dia raro.

Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira e Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

Rascunho