Nesta semana me dei conta de que se passaram exatamente três décadas desde que comecei oficialmente no mundo do trabalho. Pouco tempo antes, meu irmão e eu trabalháramos numa barraca de cachorro-quente em Madureira, bem em frente à quadra do Império Serrano. Mas o sonho que todos tÃnhamos – como tantos ainda têm – era ascender para emprego de carteira assinada, feito os caras do McDonald’s que tinha ali perto, com aqueles uniformes chiques contendo gravata e boné. E a vida, de fato, nos sorriu: aos 15 anos, consegui vaga para uma loja da multinacional na Taquara, Zona Oeste do Rio, para onde estávamos nos mudando. E por lá trabalhei durante três anos e meio, quando entrei para a faculdade de Letras, outra conquista rarÃssima na famÃlia. Creio ter sido o primeiro de toda uma parentada a entrar no curso superior, que era coisa de rico e não pra gente.
Não é de hoje que revisito esse intervalo da adolescência. Quando beirava os 40 anos, algo me impulsionou de volta aos 15, talvez nesses processos que nos fazem revisitar uma parte da infância que começa a ficar na zona enevoada entre a lembrança e a memória inventada. Esse tipo de acerto de contas, disparado quando descobri que o McDonald’s onde trabalhei havia sido demolido para no lugar entrar uma estação de ônibus, rendeu inicialmente um poema e, não satisfeito, um romance. O próximo da fila, livro sobre um adolescente pobre num Brasil na Era Collor, me levou de volta àquela profusão de imagens, cheiros, apitos e todas as sensações diárias que só os atendentes de lanchonete conhecem. O livro foi mais lido do que eu esperava, saiu no exterior e, o mais importante, deixou de ser um relato ficcional saudosista para se tornar uma forma de comunicação com uma nova geração de jovens.
Geralmente, novos autores acreditam que a maior alegria da atividade de escritor é ganhar algum prêmio, assegurando o respeito entre os demais escribas. Digo isso porque trabalho com esses projetos há uns anos. No entanto, fora dos holofotes, convites a eventos, notÃcias, resenhas e clicadas é que se percebe: a literatura é uma arte profundamente solitária. Com o tempo, aprendemos que a grande felicidade acontece quando nos damos conta de que os livros conseguem dizer algo para os leitores.
Nessa troca, acabou me procurando o Diogo (cujo nome real é outro, para proteger sua privacidade), jovem estudante de Ensino Médio do interior de Goiás. Leu o romance para atividade da escola e me achou nas redes sociais. O rapaz trabalha num supermercado, de modo que se identificou com o protagonista do romance que leu na escola.
De vez em quando, Diogo entra em contato para falar do nosso Flamengo e saber como estão as coisas. Hoje veio me dizer que tirou uma nota meio baixa no Enem, ainda não suficiente para o sonho de entrar na faculdade de Educação FÃsica. Logo hoje, que estou feliz porque meu moleque mais velho está aos pulos porque vai conseguir entrar na universidade – quer ser professor de Biologia.
Sugeri que Diogo continue estudando com afinco para tentar novamente no próximo ano, lembrando que, na época, também tive de conciliar as horas de leituras e exercÃcios com o emprego, pois não podia deixar de ajudar em casa. Não é fácil. Nunca foi. E fico a meio caminho da felicidade em famÃlia e a angústia de olhar para o mundo.
Diogo está entre os milhares de jovens alunos da rede pública prejudicados no Enem durante a pandemia. E me vem a imagem-chave que usei em O próximo da fila, quando me ensinaram a passar esfregão: é preciso fazer um movimento de infinito com as cerdas no chão, enquanto se anda para trás. Esse sÃmbolo, que tomei para o livro, me parece ainda claro para representar o paÃs depois de 30 anos.
Assim como tenho esperança de que meu filho se torne um bom professor e ajude seus alunos a seguirem seus caminhos, tenho fé nesses irmãos de balcão e de luta, nos milhões de Diogos que esperam uma chance para construir nosso futuro.