Quando tantas coisas ameaçam tirar nosso sono e roubar o que de mais precioso o ser humano possui — a capacidade de sonhar — decido nĂŁo falar em ruĂnas. NĂŁo quero tocar no que desmorona ou amaldiçoa, nem nas inĂşmeras tragĂ©dias do caos planetário. Quero falar sobre o toque de graça. Antes que alguĂ©m pense que a coluna será religiosa no sentido dogmático, nada disso. A graça Ă qual me refiro nĂŁo pertence a nenhuma crença especĂfica, apenas a uma delicada coincidĂŞncia de fatores e circunstâncias que montam uma situação especĂfica para que algo de muito bom aconteça — a graça.
A imagem de 2021 que não me sai da cabeça é a do garoto de 12 anos que encontrou uma árvore no lixão no interior do Maranhão. O que me bateu não foi o achado em si, mas o fato de um fotógrafo estar ali, exatamente na hora em que o menino revirava os restos e tirava, de dentro de um saco de plástico, o objeto mágico.
O clique sensĂvel do fotĂłgrafo foi o toque de graça, que fez com que, a partir daĂ, a imagem se espalhasse e, junto dela, surgisse uma força de comunhĂŁo para ajudar a vida do menino neste Natal, que teria nĂŁo sĂł a árvore do lixo, mas uma novinha em folha. O garoto poderia ter encontrado o enfeite no lixo e ninguĂ©m ver, como acontece com milhares de crianças pelos lixões do paĂs. Mas nĂŁo sĂł alguĂ©m viu, como registrou o momento e aquele gesto de abrir um saco plástico e encontrar a surpresa virou uma espĂ©cie de egrĂ©gora.
Todos os dias somos convocados a parar de sonhar. A desistir da fĂ©. Digo fĂ© em um sentido amplo, que inclui esperança e coragem, juntas, na mesma palavra-sentimento. Esta imagem Ă© justamente o oposto: mostra que a sensibilidade do olhar em direção ao outro pode fazer girar as rodas que movimentam os supostos acasos e coincidĂŞncias. O toque de graça Ă© o momento em que, de repente, os anjos do mundo providenciam circunstâncias para que um sonho aconteça — pode ser um pequeno desejo ou uma grande porta se abrindo. E o nome do garoto Ă© Gabriel…
Sonhar que algo de bom aconteça depois de tantas tempestades não é proibido. Que a gente não tenha vergonha nem medo de confiar. E que, sobretudo, a gente possa também emprestar nossa sensibilidade para olhar e registrar gestos alheios como a do garoto que, se não se movimentasse em esperança, não teria aberto o saco de lixo e voltado para pegar sua pequena árvore de Natal.