🔓 Toque de graça

Sem medo ou vergonha de confiar, não é proibido sonhar que algo bom aconteça depois de tantas tempestades
Ilustração: FP Rodrigues
02/01/2022

Quando tantas coisas ameaçam tirar nosso sono e roubar o que de mais precioso o ser humano possui — a capacidade de sonhar — decido não falar em ruínas. Não quero tocar no que desmorona ou amaldiçoa, nem nas inúmeras tragédias do caos planetário. Quero falar sobre o toque de graça. Antes que alguém pense que a coluna será religiosa no sentido dogmático, nada disso. A graça à qual me refiro não pertence a nenhuma crença específica, apenas a uma delicada coincidência de fatores e circunstâncias que montam uma situação específica para que algo de muito bom aconteça — a graça.

A imagem de 2021 que não me sai da cabeça é a do garoto de 12 anos que encontrou uma árvore no lixão no interior do Maranhão. O que me bateu não foi o achado em si, mas o fato de um fotógrafo estar ali, exatamente na hora em que o menino revirava os restos e tirava, de dentro de um saco de plástico, o objeto mágico.

O clique sensível do fotógrafo foi o toque de graça, que fez com que, a partir daí, a imagem se espalhasse e, junto dela, surgisse uma força de comunhão para ajudar a vida do menino neste Natal, que teria não só a árvore do lixo, mas uma novinha em folha. O garoto poderia ter encontrado o enfeite no lixo e ninguém ver, como acontece com milhares de crianças pelos lixões do país. Mas não só alguém viu, como registrou o momento e aquele gesto de abrir um saco plástico e encontrar a surpresa virou uma espécie de egrégora.

Todos os dias somos convocados a parar de sonhar. A desistir da fé. Digo fé em um sentido amplo, que inclui esperança e coragem, juntas, na mesma palavra-sentimento. Esta imagem é justamente o oposto: mostra que a sensibilidade do olhar em direção ao outro pode fazer girar as rodas que movimentam os supostos acasos e coincidências. O toque de graça é o momento em que, de repente, os anjos do mundo providenciam circunstâncias para que um sonho aconteça — pode ser um pequeno desejo ou uma grande porta se abrindo. E o nome do garoto é Gabriel…

Sonhar que algo de bom aconteça depois de tantas tempestades não é proibido. Que a gente não tenha vergonha nem medo de confiar. E que, sobretudo, a gente possa também emprestar nossa sensibilidade para olhar e registrar gestos alheios como a do garoto que, se não se movimentasse em esperança, não teria aberto o saco de lixo e voltado para pegar sua pequena árvore de Natal.

Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira e Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

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