Esses dias recebi o texto de um amigo que fez Porto Alegre a MontevidĂ©u de bicicleta. Eu estava cheia de trabalho, adiei o começo da leitura, mas por fim nĂŁo resisti e comecei a dar uma olhada. Como Ă© deliciosa a ideia de escrever sobre pedais, sobre as paisagens que se encontra pelo caminho, as pessoas, os cĂ©us, a solidĂŁo… A bicicleta Ă© para mim um veĂculo de estimação da memĂłria. NĂŁo que hoje eu faça uso dela, atĂ© porque Rio de Janeiro e trânsito caĂłtico montam uma combinação hostil a quem se aventura pelo ciclismo, pelo menos em uma rotina como a minha de filhos, escola etc. A bicicleta mora em uma parte muito especial da minha vida, quando eu vivia em AmsterdĂŁ e nĂŁo tinha carro, percorria o dia na tranquilidade das ruas destinadas mais ao pedal do que a gente. As bicicletas por lá sĂŁo mais importantes do que os pedestres…
Ao topar com o texto do meu amigo, fui sondar meus quilĂ´metros e me perguntei: por que nunca quis falar da parte boa do meu tempo na Holanda, quando eu realmente fui feliz? Quando as duas rodas me levavam onde eu queria, cruzando inclusive cidades, quando a parceria com meu companheiro de entĂŁo era (quase) perfeita e eu já tinha me conciliado com aquela paisagem que antes me irritava mais do que a lĂngua impronunciável. Enquanto eu fazia estas perguntas a minha memĂłria, que ainda nĂŁo soube me responder, recebi o livro de uma amiga, a Luciana Rangel, que mora na Alemanha – Está (quase) tudo bem. Ela escava a memĂłria com a unha e tira de lá o melhor e o pior de seus passados, tanto o recente quanto o da infância. A memĂłria como estratĂ©gia narrativa. Torturada e lĂrica ao mesmo tempo.
Em um determinado momento, Luciana escreve que a memĂłria trabalha a favor dela, talvez porque haja vários trechos no livro em que, apesar dos trechos ásperos, inclusive a morte do pai, memĂłria mais doĂda, a autora fale tambĂ©m sobre a liberdade dos pássaros libertos no parque, pássaros que o pai gostava de soltar e de outras cálidas lembranças sopradas pelo vento generoso do esquecimento das tristezas.
Fui novamente em busca dos meus prĂłprios vestĂgios e descobri que atuo ao contrário. SĂł recentemente aprendi a guardar o doce das situações e a jogar para longe o que nĂŁo foi bom. Nem sempre consigo, ainda luto contra as garras da memĂłria malvada. Antes eu sequer tentava. A memĂłria era uma espĂ©cie de guardatĂłrio das lembranças tristes e abandonadas, e as coisas boas, as alegrias de todos os tempos eu varria para debaixo do tapete. Já me esqueci de situações inteiras que me deixaram muito feliz, optando por deixar espaço nos arquivos da mente para o pior. Claro que a ficção se aproveitou deste mecanismo doentio e alguns dos meus textos sĂŁo prova disso, a exemplo de Paisagem de porcelana.
Comecei a refletir sobre o meu processo de repescagem do passado e sobre a forma como eu atuo na ficção e também um pouco na vida. Confesso que, pela primeira vez em 20 anos, tive vontade de voltar a Amsterdã e tentar encontrar a velha bicicleta da memória, preta de rodas finas e freio pedal que me fez tão feliz na vizinhança de Amstelveen, onde eu morei, e pelas cidades da Holanda. Os dias frios também me enternecem, mas: por que eu sempre me lembro da dor dos dedos congelados?
Os livros e os textos ajudam a gente a refletir sobre nossos processos. Como é bom começar o ano com leituras assim, que nos reprogramam os roteiros da alma e nos fazem querer voltar a antigas paisagens, refazendo rotas e criando novas memórias.