* O autor escreve segundo o acordo ortogrĆ”fico e a norma angolana da lĆngua portuguesa, em formação.
Num restaurante em Lisboa, pergunto ao garƧom a palavra-passe do wifi (uaifai). Ele responde-me que a senha do uifi (mais exatamente, uĆ-fi) Ć©… InevitĆ”vel nĆ£o pensar na grande aventura da lĆngua portuguesa pelo mundo. Ć o que tentarei fazer, de maneira abreviada e despretensiosa, na coluna desta quinzena.
Como Ć© que essa lĆngua, neta do latim e filha do galego, se tornou a quinta ou sexta lĆngua mais falada do mundo, usada por cerca de 280 milhƵes de pessoas espalhadas por todos os continentes? Todo o mundo conhece a resposta: a chamada expansĆ£o marĆtima portuguesa, a partir do sĆ©culo 15, foi o principal fator desse facto. O detalhe que muitos ā sobretudo os que acham ser donos naturais da lĆngua ā esquecem Ć© que a lĆngua portuguesa Ć©, desde a sua formação, uma lĆngua de misturas.
Desde logo, o portuguĆŖs, tal como outras lĆnguas mais conhecidas (espanhol, galego, catalĆ£o, francĆŖs, italiano, romeno) e menos conhecidas (sardo, provenƧal, rĆ©tico), Ć© uma lĆngua proveniente da expansĆ£o do latim no continente europeu. Durante tal processo, o latim, naturalmente, teve contacto com outras lĆnguas faladas na Europa, daĆ resultando o surgimento dos idiomas acima mencionados.
A PenĆnsula IbĆ©rica, onde se situa Portugal, comeƧou por ser invadida por povos germĆ¢nicos (vĆ¢ndalos, suevos, alanos, visigodos), a quem os romandos chamavam ābĆ”rbarosā (repare-se, a propósito, no significado atual da palavra āvĆ¢ndaloā). A primeira grande mistura do latim aconteceu, portanto, com as lĆnguas faladas por esses povos.
Em 711 aconteceu a invasĆ£o Ć”rabe e, com ela, a chegada da lĆngua Ć”rabe, cujas marcas no portuguĆŖs sĆ£o por demais reconhecidas. A reconquista do território portuguĆŖs aconteceu cinco sĆ©culos depois, em 1249, tendo desse processo nascido trĆŖs lĆnguas: galego-portuguĆŖs, castelhano e catalĆ£o. O galego-portuguĆŖs surgiu na regiĆ£o onde hoje se situa a Galiza, a norte de Portugal, tendo-se essa lĆngua estendido atĆ© ao sul do referido paĆs, Ć medida que a sua reconquista ia ocorrendo. Durante a Idade MĆ©dia, o galego-portuguĆŖs permaneceu como o idioma que manteve a unidade linguĆstica entre a Galiza e Portugal.
Desde o seu nascimento, por conseguinte, a lĆngua portuguesa nunca foi uma lĆngua āpuraā, se Ć© que tal aberração existe. O segundo grande momento da sua diversificação aconteceu com a expansĆ£o marĆtima de Portugal e a constituição das colónias portuguesas na AmĆ©rica, Ćfrica e Ćsia. Em todas essas regiƵes, natural e inevitavelmente, o portuguĆŖs sofreu mudanƧas, resultantes do seu contacto com as lĆnguas faladas pelos povos colonizados. Essas mudanƧas foram tĆ£o profundas e consistentes, em alguns lugares, que deram lugar a novas variantes da lĆngua portuguesa.
O caso mais paradigmĆ”tico Ć© o do chamado āportuguĆŖs brasileiroā, resultante do contacto com a lĆngua portuguesa com as lĆnguas indĆgenas, as lĆnguas africanas do ramo bantu, as lĆnguas de imigração e as lĆnguas de fronteira. Dois fatores contribuĆram para o sucesso da constituição dessa variante e para os seus rumos: a independĆŖncia do Brasil, em 1822, e o peso demogrĆ”fico dos africanos levados de Ćfrica, como escravos, para o hoje maior paĆs de lĆngua portuguesa. Como jĆ” escrevi aqui em texto anterior, o contributo das lĆnguas africanas, sobretudo angolanas (kimbundu, kikongo e umbundu), foi indesmentivelmente decisivo para a formação da variante brasileira do portuguĆŖs, em termos de lĆ©xico, pronĆŗncia e sintaxe.
As colónias africanas de Portugal ā Angola, Cabo Verde, GuinĆ©-Bissau, MoƧambique e SĆ£o TomĆ© e PrĆncipe ā tornaram-se independentes hĆ” menos de 50 anos, pelo que, nesse sentido, compreende-se o peso determinante da variante lusitana da lĆngua portuguesa, em particular a nĆvel da norma culta e do registo oficial. Mas, a nĆvel popular, as coisas passam-se de modo bem diferente. NĆ£o tenho dĆŗvidas que novas variantes do portuguĆŖs estĆ£o em formação em Ćfrica e que elas sĆ£o inevitĆ”veis. O que se espera Ć© que os linguistas faƧam o seu trabalho bem feito e os polĆticos saibam, em devido tempo, tomar as medidas pertinentes que se impƵem. O equĆvoco principal a evitar Ć© cair na tentação populista e demagógica de considerar que a fixação de novas variantes do portuguĆŖs Ć© permitir que cada um use a lĆngua como quiser, sem quaisquer regras, ou seja, o caos.
Tudo isto Ć©, repito, inevitĆ”vel. Por isso, nĆ£o faz o menor sentido o sentimento de alguns setores portugueses mais conservadores em termos culturais e linguĆsticos (o que inclui personalidades politicamente āprogressistasā), que insistem em defender uma inexistente āpurezaā da lĆngua e que, caricatamente, se acham os proprietĆ”rios da referida lĆngua. Como escreveu o angolano JosĆ© Eduardo Agualusa no passado dia 14 deste mĆŖs na sua coluna no jornal O Globo, āpersiste ainda no paĆs de Fernando Pessoa um certo sentimento imperial (e uma desoladora ignorĆ¢ncia) em relação ao comum idioma maternoā.
Agualusa diz ainda: āOs portugueses mostram grande orgulho na universalidade e no alcance da lĆngua que falam, mas quase sempre se esquecem de acrescentar que esse alcance ā Ć© a sexta lĆngua mais falada no mundo ā se deve aos 211 milhƵes de brasileirosā. Eu acrescento apenas que o nĆŗmero de angolanos para quem, segundo o censo de 2014, o portuguĆŖs Ć© a respetiva lĆngua materna (71% numa população de pouco mais de 30 milhƵes de pessoas) jĆ” Ć© superior a toda a população de Portugal (pouco mais de 10 milhƵes de pessoas). Angola, portanto, perfila-se como o segundo paĆs, depois do Brasil, a contribuir para a expansĆ£o da lĆngua portuguesa no mundo, sendo apenas necessĆ”rio tomar as medidas cientificamente corretas e politicamente pragmĆ”ticas que se impƵem.
Voltando ao āuĆ-fiā de que me falou o garƧom do restaurante portuguĆŖs em Lisboa. Os portugueses que se acham donos da lĆngua e acham que os demais usuĆ”rios da mesma āfalam malā, mas que, no entanto, se rendem sem dor, pelo contrĆ”rio, a toda a sorte de estrangeirismos, sobretudo, atualmente, aos anglicismos, deveriam olhar-se no exemplo desse garƧom. Sim, por que razĆ£o āuaifaiā e nĆ£o āuĆ-fiā para dizer, na nossa lĆngua comum, āwifiā? JĆ” agora, aproveito a onda para sugerir āsaiteā, em vez de āsiteā, ātuiteā e nĆ£o ātweetā e ālaiqueā, em detrimento de ālikeā (a propósito, em que momento deixĆ”mos de dizer āgostosā ou ācurtidasā?). Blogues, em vez de āblogsā, jĆ” existe. Vamo simbora dizer uĆ-fi, saites, tuĆtes e laiques? Mbora lĆ”?
Provocação, claro. Ou talvez nĆ£o. A verdade Ć© que a variantes brasileira e as africanas (em formação) da lĆngua portuguesa sĆ£o muito mais plĆ”sticas do que a variante original, como o demonstra a sua maior propensĆ£o para a transcrição foneticamente literal dos estrangeirismos e para a criação de neologismos. Para dar dois exemplos, só algum tempo depois de ter escutado um brasileiro dizer que algo era āhilĆ”rioā Ć© que eu entendi o que era, quando topei com o adjetivo āhilariousā, do inglĆŖs; por outro lado, achei simplesmente o mĆ”ximo quando escutei um passageiro angolano no aeroporto de Luanda, hĆ” muitos anos, dizer que apenas lhe faltava āfitacolarā a mala. Desde esse dia, faƧo campanha pela entrada do verbo āfitacolarā nos dicionĆ”rios de lĆngua portuguesa.
à óbvio que o aportuguesamento de palavras e expressƵes estrangeiras deve ser feito com algum bom gosto estĆ©tico. Conta-se que o ditador portuguĆŖs Salazar pensou, em dado momento, proibir o uso da palavra āfutebolā (do inglĆŖs āfootballā), substituindo-a por ābola no pĆ©ā. Anedota ou nĆ£o, diga-se, com toda a ĆŖnfase: Assim nĆ£o dĆ”!
O mesmo nĆ£o acontece, contudo, com a expressĆ£o ākey note speakerā. Literalmente, essa expressĆ£o faz subir Ć minha cabeƧa todos os meus calundus ancestrais. EntĆ£o āorador principalā nĆ£o resolve, meus?