🔓 Saites, blogues, tuítes e laiques

Como regra geral, defendo o aportuguesamento das palavras estrangeiras, mas com bom gosto estético
Ilustração: Oliver Quinto
30/08/2021

* O autor escreve segundo o acordo ortogråfico e a norma angolana da língua portuguesa, em formação.

Num restaurante em Lisboa, pergunto ao garçom a palavra-passe do wifi (uaifai). Ele responde-me que a senha do uifi (mais exatamente, uĂ­-fi) Ă©… InevitĂĄvel nĂŁo pensar na grande aventura da lĂ­ngua portuguesa pelo mundo. É o que tentarei fazer, de maneira abreviada e despretensiosa, na coluna desta quinzena.

Como Ă© que essa lĂ­ngua, neta do latim e filha do galego, se tornou a quinta ou sexta lĂ­ngua mais falada do mundo, usada por cerca de 280 milhĂ”es de pessoas espalhadas por todos os continentes? Todo o mundo conhece a resposta: a chamada expansĂŁo marĂ­tima portuguesa, a partir do sĂ©culo 15, foi o principal fator desse facto. O detalhe que muitos – sobretudo os que acham ser donos naturais da lĂ­ngua – esquecem Ă© que a lĂ­ngua portuguesa Ă©, desde a sua formação, uma lĂ­ngua de misturas.

Desde logo, o portuguĂȘs, tal como outras lĂ­nguas mais conhecidas (espanhol, galego, catalĂŁo, francĂȘs, italiano, romeno) e menos conhecidas (sardo, provençal, rĂ©tico), Ă© uma lĂ­ngua proveniente da expansĂŁo do latim no continente europeu. Durante tal processo, o latim, naturalmente, teve contacto com outras lĂ­nguas faladas na Europa, daĂ­ resultando o surgimento dos idiomas acima mencionados.

A PenĂ­nsula IbĂ©rica, onde se situa Portugal, começou por ser invadida por povos germĂąnicos (vĂąndalos, suevos, alanos, visigodos), a quem os romandos chamavam “bĂĄrbaros” (repare-se, a propĂłsito, no significado atual da palavra “vĂąndalo”). A primeira grande mistura do latim aconteceu, portanto, com as lĂ­nguas faladas por esses povos.

Em 711 aconteceu a invasĂŁo ĂĄrabe e, com ela, a chegada da lĂ­ngua ĂĄrabe, cujas marcas no portuguĂȘs sĂŁo por demais reconhecidas. A reconquista do territĂłrio portuguĂȘs aconteceu cinco sĂ©culos depois, em 1249, tendo desse processo nascido trĂȘs lĂ­nguas: galego-portuguĂȘs, castelhano e catalĂŁo. O galego-portuguĂȘs surgiu na regiĂŁo onde hoje se situa a Galiza, a norte de Portugal, tendo-se essa lĂ­ngua estendido atĂ© ao sul do referido paĂ­s, Ă  medida que a sua reconquista ia ocorrendo. Durante a Idade MĂ©dia, o galego-portuguĂȘs permaneceu como o idioma que manteve a unidade linguĂ­stica entre a Galiza e Portugal.

Desde o seu nascimento, por conseguinte, a lĂ­ngua portuguesa nunca foi uma lĂ­ngua “pura”, se Ă© que tal aberração existe. O segundo grande momento da sua diversificação aconteceu com a expansĂŁo marĂ­tima de Portugal e a constituição das colĂłnias portuguesas na AmĂ©rica, África e Ásia. Em todas essas regiĂ”es, natural e inevitavelmente, o portuguĂȘs sofreu mudanças, resultantes do seu contacto com as lĂ­nguas faladas pelos povos colonizados. Essas mudanças foram tĂŁo profundas e consistentes, em alguns lugares, que deram lugar a novas variantes da lĂ­ngua portuguesa.

O caso mais paradigmĂĄtico Ă© o do chamado “portuguĂȘs brasileiro”, resultante do contacto com a lĂ­ngua portuguesa com as lĂ­nguas indĂ­genas, as lĂ­nguas africanas do ramo bantu, as lĂ­nguas de imigração e as lĂ­nguas de fronteira. Dois fatores contribuĂ­ram para o sucesso da constituição dessa variante e para os seus rumos: a independĂȘncia do Brasil, em 1822, e o peso demogrĂĄfico dos africanos levados de África, como escravos, para o hoje maior paĂ­s de lĂ­ngua portuguesa. Como jĂĄ escrevi aqui em texto anterior, o contributo das lĂ­nguas africanas, sobretudo angolanas (kimbundu, kikongo e umbundu), foi indesmentivelmente decisivo para a formação da variante brasileira do portuguĂȘs, em termos de lĂ©xico, pronĂșncia e sintaxe.

As colĂłnias africanas de Portugal – Angola, Cabo Verde, GuinĂ©-Bissau, Moçambique e SĂŁo TomĂ© e PrĂ­ncipe – tornaram-se independentes hĂĄ menos de 50 anos, pelo que, nesse sentido, compreende-se o peso determinante da variante lusitana da lĂ­ngua portuguesa, em particular a nĂ­vel da norma culta e do registo oficial. Mas, a nĂ­vel popular, as coisas passam-se de modo bem diferente. NĂŁo tenho dĂșvidas que novas variantes do portuguĂȘs estĂŁo em formação em África e que elas sĂŁo inevitĂĄveis. O que se espera Ă© que os linguistas façam o seu trabalho bem feito e os polĂ­ticos saibam, em devido tempo, tomar as medidas pertinentes que se impĂ”em. O equĂ­voco principal a evitar Ă© cair na tentação populista e demagĂłgica de considerar que a fixação de novas variantes do portuguĂȘs Ă© permitir que cada um use a lĂ­ngua como quiser, sem quaisquer regras, ou seja, o caos.

Tudo isto Ă©, repito, inevitĂĄvel. Por isso, nĂŁo faz o menor sentido o sentimento de alguns setores portugueses mais conservadores em termos culturais e linguĂ­sticos (o que inclui personalidades politicamente “progressistas”), que insistem em defender uma inexistente “pureza” da lĂ­ngua e que, caricatamente, se acham os proprietĂĄrios da referida lĂ­ngua. Como escreveu o angolano JosĂ© Eduardo Agualusa no passado dia 14 deste mĂȘs na sua coluna no jornal O Globo, “persiste ainda no paĂ­s de Fernando Pessoa um certo sentimento imperial (e uma desoladora ignorĂąncia) em relação ao comum idioma materno”.

Agualusa diz ainda: “Os portugueses mostram grande orgulho na universalidade e no alcance da lĂ­ngua que falam, mas quase sempre se esquecem de acrescentar que esse alcance – Ă© a sexta lĂ­ngua mais falada no mundo – se deve aos 211 milhĂ”es de brasileiros”. Eu acrescento apenas que o nĂșmero de angolanos para quem, segundo o censo de 2014, o portuguĂȘs Ă© a respetiva lĂ­ngua materna (71% numa população de pouco mais de 30 milhĂ”es de pessoas) jĂĄ Ă© superior a toda a população de Portugal (pouco mais de 10 milhĂ”es de pessoas). Angola, portanto, perfila-se como o segundo paĂ­s, depois do Brasil, a contribuir para a expansĂŁo da lĂ­ngua portuguesa no mundo, sendo apenas necessĂĄrio tomar as medidas cientificamente corretas e politicamente pragmĂĄticas que se impĂ”em.

Voltando ao “uĂ­-fi” de que me falou o garçom do restaurante portuguĂȘs em Lisboa. Os portugueses que se acham donos da lĂ­ngua e acham que os demais usuĂĄrios da mesma “falam mal”, mas que, no entanto, se rendem sem dor, pelo contrĂĄrio, a toda a sorte de estrangeirismos, sobretudo, atualmente, aos anglicismos, deveriam olhar-se no exemplo desse garçom. Sim, por que razĂŁo “uaifai” e nĂŁo “uĂ­-fi” para dizer, na nossa lĂ­ngua comum, “wifi”? JĂĄ agora, aproveito a onda para sugerir “saite”, em vez de “site”, “tuite” e nĂŁo “tweet” e “laique”, em detrimento de “like” (a propĂłsito, em que momento deixĂĄmos de dizer “gostos” ou “curtidas”?). Blogues, em vez de “blogs”, jĂĄ existe. Vamo simbora dizer uĂ­-fi, saites, tuĂ­tes e laiques? Mbora lĂĄ?

Provocação, claro. Ou talvez nĂŁo. A verdade Ă© que a variantes brasileira e as africanas (em formação) da lĂ­ngua portuguesa sĂŁo muito mais plĂĄsticas do que a variante original, como o demonstra a sua maior propensĂŁo para a transcrição foneticamente literal dos estrangeirismos e para a criação de neologismos. Para dar dois exemplos, sĂł algum tempo depois de ter escutado um brasileiro dizer que algo era “hilĂĄrio” Ă© que eu entendi o que era, quando topei com o adjetivo “hilarious”, do inglĂȘs; por outro lado, achei simplesmente o mĂĄximo quando escutei um passageiro angolano no aeroporto de Luanda, hĂĄ muitos anos, dizer que apenas lhe faltava “fitacolar” a mala. Desde esse dia, faço campanha pela entrada do verbo “fitacolar” nos dicionĂĄrios de lĂ­ngua portuguesa.

É Ăłbvio que o aportuguesamento de palavras e expressĂ”es estrangeiras deve ser feito com algum bom gosto estĂ©tico. Conta-se que o ditador portuguĂȘs Salazar pensou, em dado momento, proibir o uso da palavra “futebol” (do inglĂȘs “football”), substituindo-a por “bola no pĂ©â€. Anedota ou nĂŁo, diga-se, com toda a ĂȘnfase: Assim nĂŁo dĂĄ!

O mesmo não acontece, contudo, com a expressão “key note speaker”. Literalmente, essa expressão faz subir à minha cabeça todos os meus calundus ancestrais. Então “orador principal” não resolve, meus?

JoĂŁo Melo

Nasceu em Luanda (Angola), em 1955. É escritor e jornalista. Morou no Brasil de 1984 a 1992 como correspondente de imprensa. Tem mais de 20 livros publicados, entre poesia, conto e ensaios, em Angola, Portugal, Itália, Cuba e Brasil, onde publicou a coletñnea de contos Filhos da Pátria (Record, 2008). Pode ser acompanhado no Twitter e no Instagram.

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