🔓 Requiem para a Palestina

Certos povos morrem assim: simplesmente. Sem notícia. De morte, mais do que eterna, absoluta
24/05/2021

*O autor escreve segundo o acordo ortográfico e a variante angolana da língua portuguesa.

Há muitos anos, vi uma entrevista de um escritor palestino, de cujo nome infelizmente me esqueci, à TV Globo, na qual ele dizia que o sonho dele era ver uma Palestina como já foi no passado: um país multiétnico, multicultural e multirreligioso. Os atuais acontecimentos na região comprovam, como se tal ainda fosse necessário, que tal sonho é, literalmente, simples licença poética.

Os factos estão claros. Como é sabido, o que espoletou os acontecimentos recentes foi a notícia de despejo de famílias palestinianas do bairro de Sheik Jarrah, em Jerusalém Oriental, ao abrigo da famigerada “Lei da Ausência”. Essa lei, é apenas reservada aos judeus, permite-lhes reivindicar habitações ou terrenos com fundamento em alegados direitos de propriedade do século 19. Ou seja, o diploma serve para despejar famílias palestinas e favorecer famílias judaicas ortodoxas.

Compreensivelmente, a notícia de mais um despejo dessa natureza provocou a reação dos palestinos. Eclodiu, assim, uma manifestação para reclamar justiça e opor-se a uma lei injusta, que as autoridades israelitas reprimiram violentamente. A situação descontrolou-se. O Hamas resolveu intervir. Era o que Tel Aviv e os seus aliados em todo o mundo aguardavam.

A narrativa mediática global centrou-se, então, nas ações do Hamas, mais concretamente, nos rockets disparados pela referida organização contra o território israelita, embora não tenha sido essa organização a iniciar as hostilidades. Isso passou a dominar as manchetes da imprensa mainstream ocidental. Paralelamente, o presidente Joe Biden, dos Estados Unidos, disse que Israel tinha o direito de se defender do Hamas. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyden, condenou “os ataques do Hamas contra Israel”.

Faço meu, pois, o contundente comentário do embaixador português reformado Francisco Seixas da Costa, na sua conta do Twitter: “Um dos ‘truques’ mais desonestos na abordagem da questão israelo-palestina é olhar o conflito apenas sob a perspetiva das ações agressivas do Hamas, como se um juízo negativo sobre estas pudesse condenar a causa dos palestinos”.

O que está em jogo na região é muito simples: o direito dos palestinos a terem o seu próprio estado, aspiração que fizeram sentir desde os anos 30 do século passado, depois da Coroa Britânica ter encorajado a formação de uma “casa” para os judeus na Palestina. Apesar disso, os palestinos, juntamente com os curdos, são os únicos povos da referida parte do mundo que não se constituíram em estados nos anos 40 e 50, quando todos os demais o fizeram. Pelo contrário, foram obrigados a espalhar-se pelos territórios de vários estados.

Após uma série de vicissitudes, apenas nos anos 90 a comunidade internacional aceitou o princípio de constituição de um estado palestino. Sendo manifestamente inviável que o sonho do escritor palestino que referi no início deste texto pudesse ser materializado e uma vez, igualmente, vencidas as resistências árabes ao princípio dos dois estados, este impôs-se como a solução aceite por todos para resolver o velho conflito israelo-palestino.

Melhor, quase todos. De facto, restam poucas dúvidas de que Israel quer inviabilizar qualquer estado palestino. Desde logo, o respetivo território, dividido entre a Cisjordânia e Gaza, não tem qualquer continuidade. Por outro lado, quem olhar o mapa da região desde 1946 até aos nossos dias comprovará, estarrecido, como a usurpação do território palestino obedece a essa estratégica incessante, cujo objetivo só não vê quem não quer: a criação, como denunciou recentemente a Amnistia Internacional, de um tipo de apartheid ou mesmo, no limite, uma Palestina sem palestinos. Assim, dificilmente haverá paz na região.

Talvez só nos reste a poesia, para tentar manter alguma sanidade mental perante mais uma tragédia anunciada e cujo desfecho, infelizmente, parece apontar para — é preciso dizê-lo — o genocídio de mais uma comunidade, como já aconteceu a tantas outras ao longo da história da humanidade. Partilho com os leitores, pois, um poema que se me impôs, a propósito dos atuais e trágicos acontecimentos na Palestina:

Requiem para a Palestina

Os rockets voadores planam sobre a antiga Palestina,
mas os seus olhos luminosos
apenas veem
uma vasta sombra de sangue e luto,
de onde se elevam,

como gritos de aço ferido,
desesperadas canções que já ninguém escuta.

A antiga Palestina,
terra de todos os povos
e todas as crenças,
não existe mais.

Foi usurpada pelos alegados herdeiros
do esplendoroso complexo de culpa ocidental,
alimentado pelo nosso ouro e as nossas vísceras.

Os novos centuriões
esmagam friamente as cabeças ensanguentadas
que tentam erguer-se
do perplexo fundo da História,
sem saber onde estão ou
ao menos
onde poderão morrer em paz.

Certos povos morrem assim: simplesmente.

Sem
notícia.

De morte, mais do que eterna,
absoluta.

João Melo

Nasceu em Luanda (Angola), em 1955. É escritor e jornalista. Morou no Brasil de 1984 a 1992 como correspondente de imprensa. Tem mais de 20 livros publicados, entre poesia, conto e ensaios, em Angola, Portugal, Itália, Cuba e Brasil, onde publicou a coletânea de contos Filhos da Pátria (Record, 2008). Pode ser acompanhado no Twitter e no Instagram.

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