Nestas gélidas férias de julho, depois de um tempo sem colocar o pé na estrada por pandêmicas razões óbvias, consegui sair do meu prumo e visitar um lugar que eu sempre quis conhecer: o Vale dos Vinhedos, Rio Grande do Sul. Não foi nada fácil furar a bolha, como diz minha filha, ao se referir à retomada, ou seja, voltar a ser uma pessoa no mundo, girar novamente a roda do tempo, colocar o nariz nos céus, viver entre as gentes, ainda que com todos os cuidados restritivos que o momento exige. A opção pelo ar livre veio ao encontro do desejo antigo de explorar a região.
Quem escreve nunca está de fĂ©rias. Isso Ă© algo que os que trabalham de outras formas nĂŁo conseguem entender. Viajar Ă© deslocar o olhar para possĂveis histĂłrias, garimpar nas paisagens personagens que vĂŁo interagir com as paisagens internas e, muito lá na frente, quem sabe, vĂŁo se tornar romances, contos, poema… Raramente me desligo de todo esse mundo de criação e nĂŁo gosto quando me pedem este desligamento, porque minha vida Ă© escrever, ainda quando nĂŁo estou escrevendo. Separar as duas realidades – texto e vida – Ă© o mesmo que pedir que eu seja outra pessoa. NĂŁo quero ser outra pessoa.
Por isso, quando cheguei naqueles cenários incrĂveis foi inevitável me debruçar na minha prĂłpria histĂłria. A figura de um personagem que poderia estar ali, naqueles vinhedos, se nĂŁo tivesse atracado em outras paragens Ă© um assombro que eu tento recompor. Meu bisavĂ´ veio da Itália aos 9 anos e acabou indo para Minas em vez de descer um tanto mais; foi trabalhar em uma fábrica de tecido em vez de mergulhar as mĂŁos no campo. Olhei aquelas casas, aqueles senhores de chapĂ©u falando com sotaque, as famĂlias que eles criaram, a herança que juntaram, e me perguntei sobre Marino, o bisavĂ´ sem histĂłria, sobre quem a famĂlia quase nĂŁo sabe nada. Apenas isto: o nome, a idade que ele tinha quando chegou ao Brasil e a fábrica para onde foi trabalhar. Sabem tambĂ©m que era tĂŁo miĂşdo que precisaram colocar um banquinho para ele alcançar o balcĂŁo da empresa. E mais: tinha os olhos cor de mel. NĂŁo se sabe nem de que cidade Marino veio. Ele nĂŁo Ă© tridimensional, Ă© um rabisco.
Entrei com alma naquelas paisagens lindas e cheias de histĂłrias de famĂlia. Como eu queria ter uma histĂłria completa e nĂŁo a minha, cheia de lacunas…. Me perguntava o tempo inteiro: como pode? Como, ao longo do tempo em que ele conviveu com filhos e netos, ninguĂ©m teve a curiosidade de perguntar: “Qual Ă© a sua histĂłria?”.
O escritor, ainda mais no hĂbrido com o jornalista, Ă© aquele que precisa de histĂłrias e está sempre em busca delas, mesmo que aparentemente nĂŁo esteja. Ainda que nĂŁo tenha nada para anotar, um bloquinho ou um celular, está sempre em posição de escuta, mentalmente. Saber a histĂłria do outro Ă© manter pulsante a curiosidade diante da vida em relação a todos os que se aproximam.
Visitar aquela regiĂŁo tĂŁo fortemente marcada pela cultura italiana me fez querer saber do impossĂvel. NĂŁo há registros em parte alguma; ninguĂ©m que poderia saber está vivo. Ou seja: se eu quiser descobrir a histĂłria do meu bisavĂ´, terei que inventar a partir dos poucos fragmentos que existem dele – sequer um retrato, como aqueles ovais emoldurados que decoravam as salas de jantar.
Voltei com a certeza de que vou em busca de Marino, onde quer que ele esteja. Recompor a história, mesmo que preenchendo de fantasia o que a verdade não dá conta, é um trabalho que dá ao autor uma alegria imensa.
Viajar é escrever. Deixem o escritor não ter férias – nunca.