🔓 Qual é a sua história?

Viajar Ă© deslocar o olhar para possĂ­veis histĂłrias, garimpar nas paisagens personagens que vĂŁo interagir com as paisagens internas
Vale dos Vinhedos, no Rio Grande do Sul
01/08/2021

Nestas gélidas férias de julho, depois de um tempo sem colocar o pé na estrada por pandêmicas razões óbvias, consegui sair do meu prumo e visitar um lugar que eu sempre quis conhecer: o Vale dos Vinhedos, Rio Grande do Sul. Não foi nada fácil furar a bolha, como diz minha filha, ao se referir à retomada, ou seja, voltar a ser uma pessoa no mundo, girar novamente a roda do tempo, colocar o nariz nos céus, viver entre as gentes, ainda que com todos os cuidados restritivos que o momento exige. A opção pelo ar livre veio ao encontro do desejo antigo de explorar a região.

Quem escreve nunca está de fĂ©rias. Isso Ă© algo que os que trabalham de outras formas nĂŁo conseguem entender. Viajar Ă© deslocar o olhar para possĂ­veis histĂłrias, garimpar nas paisagens personagens que vĂŁo interagir com as paisagens internas e, muito lá na frente, quem sabe, vĂŁo se tornar romances, contos, poema… Raramente me desligo de todo esse mundo de criação e nĂŁo gosto quando me pedem este desligamento, porque minha vida Ă© escrever, ainda quando nĂŁo estou escrevendo. Separar as duas realidades – texto e vida – Ă© o mesmo que pedir que eu seja outra pessoa. NĂŁo quero ser outra pessoa.

Por isso, quando cheguei naqueles cenários incríveis foi inevitável me debruçar na minha própria história. A figura de um personagem que poderia estar ali, naqueles vinhedos, se não tivesse atracado em outras paragens é um assombro que eu tento recompor. Meu bisavô veio da Itália aos 9 anos e acabou indo para Minas em vez de descer um tanto mais; foi trabalhar em uma fábrica de tecido em vez de mergulhar as mãos no campo. Olhei aquelas casas, aqueles senhores de chapéu falando com sotaque, as famílias que eles criaram, a herança que juntaram, e me perguntei sobre Marino, o bisavô sem história, sobre quem a família quase não sabe nada. Apenas isto: o nome, a idade que ele tinha quando chegou ao Brasil e a fábrica para onde foi trabalhar. Sabem também que era tão miúdo que precisaram colocar um banquinho para ele alcançar o balcão da empresa. E mais: tinha os olhos cor de mel. Não se sabe nem de que cidade Marino veio. Ele não é tridimensional, é um rabisco.

Entrei com alma naquelas paisagens lindas e cheias de histĂłrias de famĂ­lia. Como eu queria ter uma histĂłria completa e nĂŁo a minha, cheia de lacunas…. Me perguntava o tempo inteiro: como pode? Como, ao longo do tempo em que ele conviveu com filhos e netos, ninguĂ©m teve a curiosidade de perguntar: “Qual Ă© a sua histĂłria?”.

O escritor, ainda mais no híbrido com o jornalista, é aquele que precisa de histórias e está sempre em busca delas, mesmo que aparentemente não esteja. Ainda que não tenha nada para anotar, um bloquinho ou um celular, está sempre em posição de escuta, mentalmente. Saber a história do outro é manter pulsante a curiosidade diante da vida em relação a todos os que se aproximam.

Visitar aquela região tão fortemente marcada pela cultura italiana me fez querer saber do impossível. Não há registros em parte alguma; ninguém que poderia saber está vivo. Ou seja: se eu quiser descobrir a história do meu bisavô, terei que inventar a partir dos poucos fragmentos que existem dele – sequer um retrato, como aqueles ovais emoldurados que decoravam as salas de jantar.

Voltei com a certeza de que vou em busca de Marino, onde quer que ele esteja. Recompor a história, mesmo que preenchendo de fantasia o que a verdade não dá conta, é um trabalho que dá ao autor uma alegria imensa.

Viajar é escrever. Deixem o escritor não ter férias – nunca.

Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira e Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

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