Como autor de livros para crianças, às vezes me sinto pisando em ovos. Ou melhor, num campo minado. Está muito fácil você colocar o pé em algo e bum!, explodir. Ou, pelo menos, ficar com o sapato melecado.
Um veterano autor me disse que hoje, ao fazer um livro para crianças, se lembra dos tempos da ditadura, quando escrevia num grande jornal e tinha que tomar cuidado com a escolha de cada palavra, porque ela poderia ser censurada.
Os exemplos de patrulha ideológica vão de simples adjetivos a histórias inteiras, passando por cenas, personagens e ilustrações. Eu, por exemplo, já tive que explicar a uma indignada mãe por que usei a palavra “bunda” num livro juvenil. E o mais estranho é que ele contava a história de uma tribo tupi. Ou seja, as bundas abundavam, mas mesmo assim o rotundo vocábulo era um problema.
Outro zeloso pai prestou queixa contra um livro que usava a palavra “calcinha”. A coisa chegou a tal ponto que a saída foi tirar a palavra do texto. Ou seja, sem calcinha, tudo bem. Em várias escolas, muitas mais do que eu imaginava, não podem entrar livros em que haja alguma bruxa ou fada. Se o assunto é escravidão, podem reclamar se você mostrar um castigo muito duro ou se descrever momentos muito leves. Há pais que reclamam da ausência de personagens gays e pais que reclamam de ver duas noivas olhando uma para outra num cantinho de página.
É claro que os pais têm direito de reclamar. Eles realmente veem problemas nas questões que apontam. Mas os autores também têm direito de reclamar das reclamações. E com esse diálogo reclamante talvez os dois lados aprendam algumas coisas.
No meio desse tiroteio verbal, os editores, com pesar, acabam se tornando censores prévios. E muitos livros não encontram caminhos para serem publicados. Não por serem ruins, mas porque causariam dificuldades para os professores. E aí eles preferem nem usá-los.
Sou um autor que vende razoavelmente bem. Mas escrevi um livro sobre as relações, digamos, amorosas entre bichos que não encontrou editora. O pecado dele era dizer, por exemplo, que o núcleo familiar do cisne negro australiano é formado por uma fêmea e dois machos. Que albatrozes fêmeas se juntam para criar seus filhotes. Que pinguins machos podem formar casais por toda a vida. E que golfinhos namoram golfinhos, que namoram golfinhas, que namoram golfinhas. É claro que não se tratava de uma pregação à homossexualidade, aos trisais ou às surubas. Não tenho nada contra essas práticas, mas sou um heterossexual monogâmico mais tradicional que uma cueca samba-canção branca. A ideia era apenas mostrar que o amor se manifesta de diferentes formas na natureza. Porém, levei o livro para editoras grandes, médias e pequenas, e nenhuma topou publicá-lo. O amor é animal! teve que sair mesmo pela minha modesta Padaria de Livros.
A censura geralmente começa nos pais, passa às escolas, daí chega às editoras e acaba no colo dos autores, que têm que fazer uma dolorosa autocensura. Por exemplo, pensei em escrever uma história em que vários deuses se encontram numa espécie de chá das cinco celestial, e aí chega uma criança querendo saber em qual daqueles seres divinos ela deveria crer. As ilustrações tinham um potencial espetacular e o texto talvez ficasse divertido. Mas acredito piamente que o livro receberia reclamações de pais católicos, judeus, evangélicos, muçulmanos e, talvez, ateus. Por enquanto, vou deixar a ideia no fundo da gaveta. Espero que, um dia, Inanna, a deusa suméria, me inspire a tentar escrevê-la.
Enfim, é claro que um escritor não quer ofender seus leitores. Quer cativá-lo, seduzi-lo, fazer com que ele fique preso ao livro até a última página. Mas também não quer abrir mão da alegria de escrever, de imaginar, de inventar mundos, de dizer o que pensa. E isso não está fácil. No Brasil atual, irmão briga com irmão, pai contra mãe e cunhado contra primo de terceiro grau. Cada um quer impor sua verdade como a última e única. Porém, como dizia Bambaleão, personagem de um programa infantil nos anos 80: “a verdade é que não há verdade. Não é verdade?”.