Inicio a crônica citando o poeta italiano Francesco Petrarca, porque assim, com um nariz de cera bonito, nossa lufada quinzenal aqui teria algum tipo de credibilidade a mais do que um reles pitaco datado que se evapora ao breve toque digital – e alerto que o assunto nem terá a ver com exame de próstata, e sim a impaciência atual diante de uma frase longa como esta, o que serve como anunciação evidente para o fim de um período: o composto por subordinação. Quando as crônicas eram impressas pelo menos serviam para embrulhar peixe ou forrar o fundo de gaiolas. Agora nem isso.
Disse lá em cima que iria começar com uma citação de Petrarca, e cadê? Em vez de versar, tergiversei, e poderia usar o argumento de que hoje é sábado – numa semicitação de Vinicius de Moraes – e, destarte, todo mundo gostaria mesmo era de dar uma relaxada diante disso tudo que está aí, sem cobranças ou julgamentos. Para isso serve a CPI, oras.
E lá vamos pelo terceiro parágrafo e nada da citação, que a essa altura parece alguém esperado para um jantar, mas não chega por nada. Como se diz no Rio de Janeiro: “estou chegando”, que na verdade significa “estou quase saindo”. E estamos naquele momento em que começam a pensar que o indivíduo atrasado não vai vir mais, por isso é melhor começarem a comer logo.
Cá estamos, nel mezzo del cammin di nostra crônica, e a leitora começa a duvidar que vai aparecer qualquer estrofe de Petrarca. E confesso que eu mesmo me esqueci. Decerto não seria um soneto inteiro, por questões de espaço. Talvez uma ou duas quadras, embora o melhor quase sempre nessa estrutura poética esteja nos tercetos, indicando que seria grande a probabilidade de se tratar apenas de um último verso, uma chave de ouro que poderia condensar toda uma ideia.
No entanto, eis que temos um novo problema. Além do atraso na citação introdutória, há que se perguntar o que ela teria a ver com o título da crônica, que pode ter chamado a atenção da leitora e criado certa frustração – como se não bastassem as da vida ordinária.
Pois bem, o lance seria simplesmente defender aquela pessoa que chega nos encontros e festas de família com gracejos desconexos, anedotas d’antanho, piadas anacrônicas, trocadilhos de quinta, provérbios dispensáveis, frases mal-ajambradas, gentilezas inconvenientes, performances sem timing, elocubrações vexaminosas e toda a sorte de proposições que levaram à criação do Tio do Pavê.
Que nunca ouviu “É pavê ou pacumê?”, a pergunta que, há gerações, precede olhos revirados e uma leve bufada? É certo que existe um equivalente em cada língua, uma vez que estamos falando de uma função social, quase um arquétipo familiar, um galho torto e esquisito da árvore genealógica. Ninguém gosta do Tio do Pavê, coitado. No entanto, quais seriam as opções?
Sempre preferi fazer uma contra-piada, improvisar outra pior ou apelar para o nonsense a rejeitar um Tio do Pavê. Isso porque é melhor alguém tentando criar humor sem compromisso do que encarar o mala sabe-tudo, o deprimido contumaz, o saudoso da ditadura, o fofoqueiro, ou aquele que se tornou uma pessoa tão amarga que não consegue olhar para nada sem que enxergue as próprias decepções acumuladas.
O Tio do Pavê não quer saber de nada disso. Tem total ciência de que não vai agradar sua plateia. Mas insiste na redundância, no humor requentado como deboche diante dos ciclos da vida, pois sabe que é ela uma piada autoirônica em si mesma.
Temo que, assim como todos os adeptos de uma perspectiva bem-humorada da vida, venha a me tornar um Tio do Pavê, esse bobo da corte que toda família tem, mas as alternativas, talvez a pretensão cômica seja a menos dolorosa diante das outras.
Ah, só agora me lembrei do Petrarca, cuja leitura aleatória me fez, sei lá por que motivo, imaginar um Tio do Pavê:
E, a toda a gente, só agora vejo
Que fui causa de riso, tão-somente,
Do que comigo mesmo me envergonho.