🔓 Perspectivas passadas e lembranças futuras

Com o isolamento, bate um misto de felicidade e tristeza olhar o encontro com família e amigos, a reunião presencial de pessoas queridas que já parece algo distante
Edward Hopper / reprodução
28/11/2020

(28/11/20)

Ao longo deste ano de pandemia, muita gente está dando um suspiro quando aparecem aquelas postagens nas redes sociais mostrando onde estavam há um, dois, cinco, dez anos.

Com o isolamento, bate um misto de felicidade e tristeza olhar o encontro com família e amigos, a viagem de férias – até de trabalho –, a reunião presencial de pessoas queridas que já parece algo distante. É como um tbt oceânico, absoluto, azulíssimo.

Tudo indica que 2020 vai ser também o ano de um saudosismo lento e longo, como aqueles grandes trens de carga cujo último vagão parece não chegar nunca.

***

Recebo no e-mail do trabalho o convite para um evento sobre não me lembro o quê, mas do fim do título consta “e perspectivas futuras”. E alguma vez alguém, à exceção de Marty McFly, já teve perspectivas passadas? Acompanho há uns anos, sem nenhum desejo de aderência, o avanço dos jargões corporativos.

Houve a era do startar e consta que ainda vigora o “foco principal”, existente ainda com a variação estrábica “o projeto tem dois focos principais”. Mas me parece que a grande tendência é incluir o sufixo -idade para dar aquele lustre acadêmico e supostamente inteligente nas reuniões de trabalho. Por esses dias caiu um dialogicidade nos meus olhos como se fosse um cisco.

Às vezes, o diálogo não basta.

***

O tempo faz que não anda na arte, e a literatura consegue apontar bem para o horizonte invisível. Leio um conto belo e triste do livro A loucura dos outros, de Nara Vidal. A história é sobre uma mulher triste no casamento, e cujo asco pelo marido a faz desejar que o futuro apenas chegue com algo para tirá-la dessa letargia.

Vou direto ao final arrebatador: “O futuro não veio. O despertador não tocou. Quando chegou a morte ainda era presente. Eu sei. Eu senti. Não doeu. Acabou. E acabou com o agora. O futuro não existe e a cidade do alto brilha lindamente”.

***

O acaso não existe. Descobri por acaso.

***

“Tempo é a vida de morte: imperfeição.” Eu acho que foi o Guimarães Rosa quem escreveu isso, mas não vou pesquisar: estou de mudança e, com os livros encaixotados, guardo a citação como num sarcófago para redescobrir futuramente, naquela aventura lenta e hipertextual que é recolocar livros nas estantes.

Porém, tenho aqui o livro azul, azulíssimo, de Wesley Peres, escritor desses que só não é mais conhecido porque mora no interior de Goiás. Sim, são aquelas injustiças que consideramos pessoais com os nossos autores preferidos da vida inteira.

No seu O corpo de uma voz despedaçada, Wesley nos diz: “O tempo se lhe dissolve/ e homem intui e sofre/ a língua lhe antecipa/ a fratura imposta”. O livro evoca a materialidade da carne, a morte e Deus como caminhos de entendimento do tempo, que é tão-somente travessia.

***

Há um ano, eu estava em São Paulo na cerimônia de um evento literário. Vem a foto geral, a selfie com os mais chegados, a memória recriando o chope depois com os camaradas, quase dá para sentir o cheiro do tempo. Entre o lá e o cá vêm sempre aqueles dois versinhos do Pessoa: “E eu era feliz? Não sei:/ Fui-o outrora agora”.

Porque a memória é que nem o título daquele livro de poesia do Adriano Espínola: praia provisória.

***

Amanhã, 29 de novembro, será o segundo turno das eleições municipais. Escrevo isso com quem carimba a página/tela para marcar que, no ano da pandemia, houve eleições, na expectativa de deixar um recado (político, cronológico, fatual?) para futuros leitores da crônica.

Mas e essa sensação constante, que percebo em tantos escritores colegas de geração, e que notei em vários da anterior, de que não fazemos mais que andar na praia acreditando – ou fingindo acreditar – na perenidade das pegadas, rapidamente desmanchadas em cada tapa das ondas? Somos todos carimbadores do ar.

E talvez, afinal, essa seja a graça da coisa.

Henrique Rodrigues

Nasceu no Rio de Janeiro (RJ) e trabalha na gestão de projetos de incentivo à leitura. É autor de 15 livros, entre romance, poesia, infantis e juvenis. Site: www.henriquerodrigues.net.

Rascunho