À medida que a gente envelhece, é comum que antigas lembranças reapareçam do nada. Então, o que a gente pensava que já havia superado ou enterrado no pó do esquecimento volta com força sobrenatural. Outro dia um acontecimento voltou em terceira dimensão e foi como se eu sentisse na pele novamente toda a dor. Eu tinha 10 anos e fui punida severamente pela menina de Ipanema por achar que o Mouse do Mickey se falava tal como se lê em português: mou-se.
Eu era uma das últimas a chegar em casa, quase de noite. A moça da condução depositava uns oito ou nove (como cabiam na velha BrasÃlia eu nunca consegui entender) e eu ficava quase por último. Quase. Eu voltava ao lado da tal menina que me torturava pelos mais insignificantes motivos. Quando ela não me torturava com alguma provocação que tinha o objetivo claro de me humilhar, ela me ignorava e eu então era anulada inteiramente dentro daquele veÃculo.
Até que um dia ela encontrou uma forma ainda mais cruel de me atingir. Foi quando pronunciei a palavra maldita: mou-se. Ela estava exibindo alguma coisa que havia comprado nas férias em algum lugar incrÃvel com sua famÃlia incrÃvel, e eu, inocentemente, quis me intrometer na conversa como se tivesse alguma coisa incrÃvel que pudesse ser compartilhada. Então lembrei que minha mãe tinha comprado em Copacabana uma blusa do Mickey… Mou-se! Falei assim, cheia de orgulho, como se aquela aquisição fosse realmente valer alguma coisa na avaliação da menina.
Risos debochados seriam a reação mais evidente, embora naquele momento eu não tivesse ideia do risco. Se tivesse, teria me calado. Mas em nenhum cenário eu poderia imaginar o que a garota faria diante do meu erro fatal. Depois de rir todo o percurso da Gávea ao Jardim Botânico, quando finalmente a BrasÃlia chegou à minha casa, eis que a menina mirou bem a minha mochila que eu aconcheguei nas costas para sair do carro e me deu um pontapé tão forte que fui expulsa do carro e caà de joelhos na calçada. Subi chorando alto a escadaria do prédio. Minha mãe observava da janela.
Jamais consegui transformar aquele momento em algo positivo. Guardei a mágoa. Sei que não é nada bom isso. A verdade, agora percebo, é que o chute me ajudou a criar uma forma de capa protetora em reação a algumas pessoas. Descobri que os perversos estão por todos os lados, disfarçados ou não. Eu provavelmente não teria descoberto isso se não tivesse sido cuspida daquele carro – será? A pergunta que persiste é se a gente consegue ter consciência da crueldade se não tiver algum contato com a mesma. Infelizmente a resposta é não. E, sim, crianças podem ser muito cruéis.