É incrÃvel mas até por isso o cidadão brasileiro precisa lutar: pelo direito ao seu quinhão de desgosto, tristeza, desolação. Quem mora aqui sabe do que estou falando: abram alas para a Ditadura da Alegria, para os pés que devem sambar o ano inteiro, não importa o que aconteça.
Até curto um remelexo, mas como içar os cantos da boca frente a esse desfile? Na esquina da minha casa, o porta-bandeiras de roupa rasgada segurando a frase: a fome dói, me ajude. Em seguida o cortejo dos mil e quinhentos mortos no dia anterior, seguido pelo carro das duzentas e cinquenta mil ossadas, sobre o qual acena orgulhoso o presidente. Na ala das baianas, a falta de leitos. Na dos indÃgenas, a de oxigênio. E avança o garimpo pela avenida, avança a milÃcia pela avenida, a bateria de pipocos disparados pelo cidadão de bem, no contratempo os e-mails implorando: por favor, assine a petição! E há quem bata palmas. E há quem diga amém. E há quem peça um novo desfile daqui a dois anos.
Não vou negar, assisto a tudo de camarote, do alto de um décimo andar, gotejando sobre uma cerveja a minha desolação. E claro que ao me ver assim, alguns dizem: para com isso, você tem saúde, amor e dinheiro, não tem do que reclamar. E dizem para o porteiro do meu camarote: você tem saúde e amor, não tem do que reclamar. E dizem para o porteiro do porteiro do meu camarote: você está vivo, tem que dar graças a Deus.
Me desculpem, meus dedicados puxadores do Samba da Alegria, mas está na hora de vocês baixarem essa desrespeitosa cuÃca. Quero chorar alto e em coro, a ponto de interromper o desfile, alagar a avenida, enferrujar com lágrimas o tambor das milÃcias, estancar com muco o avanço do garimpo. E ainda que a gente consiga interromper essa festa fúnebre e restabelecer aquele velho samba, ainda há muito o que chorar, sempre há o que chorar, no pessoal e no coletivo.
Aliás, não existe outro jeito de espantar a tristeza que não seja olhando-a no olho.