🔓 Passagens

Encontrar amigas num brunch e passear com a cachorra valem um tratamento psicanalítico completo
Ilustração: João Verderame
20/04/2023

Me preparo para o brunch com as amigas como quem se prepara para um casamento. A ocasião, na minha vida, é raríssima.

Meus amigos, de uma forma geral, são do tipo que a gente encontra na padaria, em pé no balcão. Ou no boteco da esquina. Sempre lugares-chinelo.

Brunch é chique no último, de acordo com a nossa cartilha. Minhas amigas estão fazendo isso do alto de sua generosidade, para me proporcionar um momento de realeza.

Estou ansiosa com esse brunch desde uma semana antes.

Coloco despertador.

Passei cera na bota. Passei roupa. Passei batom. Passei na loja de doces. Passei esmalte nas unhas. Passei pela casa de um irmão na ida. Ah, a língua portuguesa. Passeis tão diferentes que não cabem no texto, em mim, no mundo. Passei, também, em revista o meu momento de vida, mas esse passei fica na terapia.

Como era esperado de um encontro entre três amigas tão antigas e íntimas, a conversa se resume a tiro, porrada e bomba. Dedo na ferida com café e pitadas de o que mesmo você esperava, sua anta. São muitas vidas compartilhadas.

Chego em casa ainda com a conversa ressoando dentro de mim. Não consigo lembrar de um único encontro em todas essas décadas em que tenhamos falado amenidades. Cada encontro desses vale um tratamento psicanalítico completo. Chupa, Freud.

Nina me olha indignada. Não foi convidada para o brunch.

Googlo o preço de passagens, na esperança de uma viagem qualquer, um novo horizonte, uma língua nova, uma alfândega, qualquer coisa. Não será em 2023, pelo visto.

Calço o tênis, boto calça e seguimos, nós duas, por outras passagens.

Andamos por ruas e memórias. Ela, pelo cheiro. Eu, pelo delírio.

Eventualmente desmoronamos, nós duas, em um bar de esquina qualquer. Duas águas sem gás, por favor. E lá ficamos, até que o cansaço também passe.

Na volta, passamos para a outra calçada. Menos sol. Passamos a ser, nós duas, caçadoras de sombras.

Um cachorro passa por nós. Nina não gosta dele. Um desafeto antigo. Rosna. Tenho vontade de rosnar também, mas me contenho (por enquanto).

Escolhemos outro caminho para a volta, com outras memórias, outros cheiros, outros delírios.

Outras passagens.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho