Quando meu sobrinho de quatro anos apagou a luz da sala, ficamos todos no escuro. Tacitamente, acordamos nĆ£o acender nenhuma luz e nĆ£o reagir adultamente Ć atitude dele. Ainda nĆ£o sabĆamos o que o menino faria no escuro, ele e seu bonezinho Ć sombra, jĆ” era noite quase fechada num prĆ©dio em Belo Horizonte, verĆ£o chuvoso, e nós seis ali, todos no escuro, sendo guiados por um piĆ” que mal sabe falar. NinguĆ©m se rebelou, ninguĆ©m xingou, ninguĆ©m esbravejou, ninguĆ©m acendeu o three way como se nĆ£o fosse nada a ideia do garoto. Apenas ficamos no escuro por alguns minutos, Ć espera da próxima fase.
De fato, ele logo fez um movimento que acendeu a lanterna do celular velho que lhe cabe para brincar. PĆ“s o telefone encostado em uma garrafa de refrigerante sobre a mesa, quase no meio de nós, e deixou que a luz forte iluminasse apenas uma parede de fundo. Todos passamos a olhar para aquela tela improvisada, uma parede bege, um pouco acidentada pela textura de massa, onde ainda nĆ£o acontecia nada. Fomos entregues Ć penumbra. Era uma certa engenharia, coisa de gente pensante, mas nós ainda tĆnhamos dĆŗvida sobre o futuro próximo.
Mais alguns segundos e meu sobrinho então mexeu com as mãozinhas magras e miúdas e passou a tentar projetar na parede uma sombra de animal. Um cachorro, um jacaré, alguma coisa que tinha boca, mas que não conseguia ter orelhas ou nariz, focinho ou pés. Uma sombra apenas, mas que funcionaria como um bicho, uma silhueta meio imaginÔria que dependia muito da nossa colaboração, mais uma vez. Junto com o gesto e a sombra, ele passou a reproduzir um som, e era uma espécie de latido. Então, ainda tacitamente, todos entendemos que se tratava de um cão que latia, mesmo que não fosse bravo, e nem fosse cão, e nem fosse animal. E o pai do garoto entendeu que era um convite para brincar. E também fez, com sua mão grande, um animal maior. A forma era a de um crocodilo, talvez nem isso, mas era também, e ele vinha enorme, meio de cima, projetando uma sombra que atacava a sombrinha das mãozinhas do pequeno, mas que não chegava a machucar ninguém. Era uma ameaça, um bicho imenso e robusto, que chegava do alto da parede e nhac. O som do nhac era aterrorizante. E meu sobrinho misturava gargalhadas arfantes a berros e a gritos finos, estridentes. Chegava a tremer, a mexer os bracinhos em sinal de terror, mas a boca ria muito, os olhos brilhavam no escuro, o bicho enorme continuava sua ameaça imaginÔria e o misto de medo e alegria nos contagiava a todos.
Entrei na roda. Fiz um pÔssaro que chegava voando do alto e apenas bordejava pela parede, sem som e sem ameaça alguma. Era para aumentar a fauna, embelezar a paisagem. Ninguém mais sabia fazer muitas formas. O gurizinho mantinha seu cachorro sem orelhas, enquanto o pai dele volta e meia reconduzia ao centro da parede um bichão que quase tomava todo o espaço de projeção. Quando o pai se cansava e parava, o pequeno dizia: mais uma vez! E tudo recomeçava.
NĆ£o sei quanto tempo isso durou. Provavelmente pouco. NinguĆ©m acendeu a luz enquanto a brincadeira rolou. Era bem escuro jĆ”. Os gritos do piĆ” eram altos. O condomĆnio inteiro deve ter escutado. E nós só querĆamos ver a enormidade da alegria gratuita dele, brincando com luz e sombras numa parede bege. Topamos a parada atĆ© ele mesmo mudar de ideia, meter os dedinhos no interruptor e a luz voltar, apagando as sombras, os bichos, as contendas, as batalhas, os berros, as caƧadas e os nossos sorrisos desbragados.
NĆ£o me impressionou tanto a ideia que ele teve; nem a relativa habilidade do pai dele de fazer monstros zoomórficos; a potĆŖncia do grito infantil; nem me impressionaram as caras de bobos apaixonados da tia, dos avós, da mĆ£e. O que mais me impressionava, naquela brincadeira de minutos, era a capacidade que o gurizinho tinha de acreditar emocionadamente nas sombras que ele mesmo criava, nas imagens que ele sabia que nĆ£o eram āreaisā, nas ameaƧas de um bicho amorfo que ele sabia serem as mĆ£os do próprio pai. Me impressionava a reação corporal e espiritual dele Ć s histórias que ele via, que ele provocava, que ele inventava para se divertir por alguns segundos, mas que ele mesmo sabia como cessar: tocando o interruptor. Que delĆrio delĆcia. Que maravilha Ć© estar disposto a uma certa ficção e fingir nĆ£o ter o controle sobre ela. Que alegria recompor esses sentimentos ao toque de um dedo, ter a capacidade de atribuir sentido a qualquer coisa que se pareƧa um personagem, a qualquer trilha que se pareƧa uma história, bancar uns momentos de alegria, divertir-se e cessar. Acho que essa crianƧa mora aqui em mim, nos livros que procuro, as paredes das minhas projeƧƵes, meus jacarĆ©s, minhas aves que voam baixo. Eu voando alto. Ou por onde eu quiser.