🔓 Palavras ao mar

Uma língua existe e persiste, avançando no mundo quando hå paixão pelo aprendizado
Ilustração: Miguel Rodrigues
06/11/2022

EntĂŁo fui navegar pelo mundo para testar a recepção de um trabalho sobre a histĂłria da lĂ­ngua portuguesa para crianças — de todas as idades. A ideia era — e ainda Ă© — levar este conhecimento para crianças que vivem no exterior, mas que tĂȘm pai ou mĂŁe falantes do portuguĂȘs. Receberam, portanto, a lĂ­ngua como “herança”. NĂŁo Ă© bonito isso? Em um mundo tĂŁo material, receber uma lĂ­ngua — e todo seu conteĂșdo cultural, imaginĂĄrio e poĂ©tico — como herança?

O mais lindo de tudo foi ver com meus prĂłprios olhos e ouvidos o desejo de aprendizagem. Sim, pois uma coisa Ă© aprender, por impulsĂŁo, porque estĂĄ no currĂ­culo, porque a mĂŁe ou o pai obrigam a seguir. Outra coisa Ă© o desejo de aprendizagem, ou seja, quando a gente percebe na criança a alegria de dizer uma palavra, uma frase ou fazer uma pergunta na lĂ­ngua que herdou — ou mesmo no adulto que vive lĂĄ fora, mas que, por misteriosas razĂ”es, quer falar o portuguĂȘs.

Em uma escola internacional na França, onde as crianças aprendem o idioma que seus pais falam em casa, fiquei realmente surpresa com o envolvimento dos alunos. Eles não só queriam falar, mas buscavam a leitura dos livros, pois sabem que o conhecimento precisa se sustentar no que leem. Conseguimos uma linda interação feita de palavras e de paixão pelo aprendizado.

Percebi que as lĂ­nguas sĂŁo pulsantes e aproximam as pessoas quase magneticamente. Outro exemplo foi quando estive na Faculdade de Artes da Universidade de Helsinque a fim de falar para estudantes adultos que desejam aprender o portuguĂȘs. Apresentei meu livro e meu trabalho em geral. Foi uma espĂ©cie de encantamento ouvir estudantes, nascidos em sua maioria na FinlĂąndia, buscando aprender o PortuguĂȘs pelo desejo do aprendizado. Duas estudantes vieram conversar comigo apĂłs a aula. Queriam meus romances, bebiam as palavras que eu dizia como se quisessem tomar uma espĂ©cie de poção mĂĄgica e falar da mesma forma como eu, ou seja, nativamente.

Trocamos ideias e prometemos organizar discussĂ”es sobre os livros — em portuguĂȘs. Uma delas, quando eu disse, no meio de uma frase, a palavra existĂȘncia, me deu um largo sorriso e disse: “Que lĂ­ngua linda! Eu quero muito falar assim tambĂ©m”.

ExistĂȘncia. Uma lĂ­ngua existe e persiste, avançando no mundo quando existe paixĂŁo pelo aprendizado. Falar sobre um livro nĂŁo Ă© somente reproduzir uma leitura, mas transmitir paixĂŁo pelo conhecimento. Essa Ă© uma herança de vida que podemos deixar para filhos, netos, bisnetos.

Quando eu voltei, no aeroporto tinha uma funcionĂĄria que reconheceu meu sotaque e falou comigo em portuguĂȘs. Perguntei de onde ela era. “Angola”, me respondeu. AĂ­ contei sobre meu livro da histĂłria da lĂ­ngua portuguesa, da possibilidade fazer o download gratuito do material. Ela se interessou e disse que ia buscar. E completou: “Eu queria saber por que na escola a gente nĂŁo aprende a histĂłria da Angola”.

Eu nĂŁo tive o que dizer, pois esta Ă© uma outra histĂłria…

Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira e Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do PrĂȘmio Rio. Assina coluna semanal na revista SeleçÔes. Seu trabalho mais recente Ă© a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da SeleçÔes estĂŁo no seu podcast, disponĂ­vel no Spotfy, lidos pela prĂłpria autora.

Rascunho