🔓 Os necroliberais

Que “liberalismo” é esse que põe em causa a saúde pública e pode levar à morte milhões de pessoas, como está a acontecer em vários países?
O filósofo camaronês Achille Mbembe, autor de “Crítica da razão negra”
18/01/2021

O filósofo camaronês Achille Mbembe, que se tornou mundialmente conhecido com o seu livro Crítica da razão negra, publicado em 2013, cunhou dez anos antes uma das palavras mais usadas na atual era pandémica: “necropolítica”. O ensaio, que posteriormente virou livro, questiona os limites da soberania do Estado quando o mesmo decide quem deve viver ou morrer.

Porquê que o termo é usado com tanta frequência no momento em que a humanidade enfrenta a pandemia da Covid-19? Em entrevista à Folha de S. Paulo, em março do ano passado, Mbembe explicou: “O coronavírus está a mudar a maneira como pensamos sobre o corpo humano. Este virou uma arma. Afinal, quando saímos de casa, podemos contrair o vírus ou transmiti-lo a outras pessoas. Agora temos o poder de matar”.

O pensador africano, que leciona na Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, capital económica da África do Sul, é um defensor convicto do confinamento. “O isolamento é justamente uma forma de regular esse poder [o poder de matar que tem o nosso corpo, presentemente, por causa do novo coronavírus]” – enfatizou ele, na mesma entrevista.

A propósito, estamos todos lembrados das imagens dos hospitais italianos, durante a primeira vaga da doença, quando os médicos tinham de decidir quem podia continuar a ser atendido ou não, por causa da sobrelotação dos mesmos. Não podemos, igualmente, deixar de mencionar o atual debate sobre o processo de vacinação contra a Covid-19: quem vacinar primeiro? Ou seja, quem deve viver e quem pode morrer?

Esse debate sobre quem atender ou deixar de atender, em caso de sobrelotação dos hospitais, ou sobre quem vacinar primeiro tem desvelado a natureza necrófila da atual ideologia dominante: o neoliberalismo. Com efeito, e além dos defensores de que a economia não pode parar, mesmo que uma parte da população tenha de morrer, temos aqueles que defendem abertamente que os jovens devem ser priorizados, em detrimento dos mais idosos, quer em termos de tratamento quer de vacinação.

Disse Achille Mbembe: “Essa lógica do sacrifício sempre esteve no coração do neoliberalismo, que deveríamos chamar de necroliberalismo. Esse sistema sempre operou com a ideia de que alguém vale mais do que os outros”.

As palavras do importante filósofo camaronês fizeram-me pensar nos fanáticos antimáscara e antivacina que parece existirem em todos os lugares, exceto nos estados asiáticos, por razões culturais ligadas mais à importância do confucionismo na região e menos ao “comunismo”, como acreditam os simplistas. A atestar a última afirmação, basta lembrar a pesquisa que mostrou que, nos EUA, os cidadãos de origem asiática começaram a usar máscaras, sem qualquer constrangimento, mal a pandemia foi declarada.

Os que se opõem ao uso da máscara e que recusam ser vacinados contra a Covid 19 gostam de se auto-identificar como “liberais”. Mas é preciso colocar – sem hesitar – várias aspas nesse adjetivo.

Desde logo, que “liberalismo” é esse que põe em causa a saúde pública e pode levar à morte milhões de pessoas, como está a acontecer em vários países? Se não tivessem, como imagino, horror aos livros, os fanáticos antimáscara e antivacina deveriam ler Dickens – Foucault que me perdoe – para saber como a Inglaterra montou o seu sistema de saneamento básico em Londres.

Por outro lado, o conceito de liberalismo, como sabemos, presta-se a práticas contraditórias e por vezes radicalmente opostas. Muitos liberais económicos, por exemplo, são conservadores e reacionários em termos políticos, assim como no plano dos costumes. Os liberais em termos políticos e morais não são necessariamente adeptos do liberalismo económico.

A verdade é que há entre os atuais fanáticos antimáscara e antivacina e os protofascistas, supremacistas identitários e golpistas que crescem por todo o lado coincidências suficientes para concluir que o seu alegado “liberalismo” não passa de um grotesco simulacro. Um “plano”, como dizemos aqui.

Sim, esses madiês, como também dizemos aqui [no Brasil, será “esses caras”], precisam de começar a ser chamados “necroliberais”.

* O autor escreve segundo o acordo ortográfico e a variante angolana da língua portuguesa.

João Melo

Nasceu em Luanda (Angola), em 1955. É escritor e jornalista. Morou no Brasil de 1984 a 1992 como correspondente de imprensa. Tem mais de 20 livros publicados, entre poesia, conto e ensaios, em Angola, Portugal, Itália, Cuba e Brasil, onde publicou a coletânea de contos Filhos da Pátria (Record, 2008). Pode ser acompanhado no Twitter e no Instagram.

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