Paro um pouco e me perco a olhar aqueles barcos estacionados na água, e é aí que me dou conta de que do mesmo modo que guardamos memória dos lugares onde lemos certos livros, assim, imagem dentro de imagem, também há quadros cuja memória vem colada aos lugares onde os observamos com demora. Os barcos que eu olhava agora há pouco, por exemplo. Sempre os vi encimando a cabeceira da cama da mãe. Um quadro de 1957, época pródiga em barcos e estaleiros na pintura do meu avô.
Mais de cinco casas diferentes ao longo dos últimos trinta anos e o mesmo quadro, de mais de um metro de mar e quase isso de montanha ao fundo, sobre a cama da mãe, como se já fizesse parte de sua existência de cais um quarto em volta, e não qualquer quarto, mas o da mãe. Uma festa quieta de mastros e cordames entrecruzados, com uma serra azul ao fundo, tudo ali atracado, embalando, adormecendo o arrojo das viagens em proas meio arrebitadas, uns de lado, outros de frente para quem vê, todos cuidando de avolumar nesse encaixe flutuante aquele outro corpo imenso e cavo do silêncio. Assim também em outros quadros de barcos pintados pelo avô, esses mastros iludindo fincar-se numa espera sonolenta e, mesmo os de velas enfunadas, já vogando, todos eles barcos sem sinal de gente.
Esses que acompanham a mãe há tanto tempo, imagino que ritmem seu sono na vibração calma dos azuis que o cercam. É como os vejo: velhos viageiros de guarda no cais de um quarto, absorvendo o sonho ambiente. Tudo em vigília espelhada, barcos sobre sonhos e sonhos sobre águas, cais e quarto em líquida contiguidade, sem sobressaltos nem pesadelos.