🔓 Onde o povo está

E se o cronista a serviço do coração de um mundo fosse lido pelos personagens que o inspiram?
Ilustração: Alfredo Aquino
23/04/2022

Tomo um famoso verso do Sr. Bituca e vou ali com ele até a praça. “Todo artista tem de ir aonde o povo está”, ora sim! Como não? Considerando, claro, que, para o caso de um escritor, se podemos colocá-lo entre os artistas, já que entre artistas em geral um escritor se sente em casa, ir aonde o povo está não necessariamente significa que um escritor tenha de sair ele mesmo a viajar daqui para lá. Afinal, nem bem passamos a cancela da literalidade, é a palavra que viaja países e séculos.

Mais matizada fica a alma do verso do Bituca se pensarmos num cronista, para quem os assuntos e tipos das ruas importam substancialmente para a prática do ofício. Haverá, pois, entre esses, os que conheçam sua cidade pelos pés, que por sua vez levam a vagar horizontalmente a atenção de olhos e ouvidos. Se não a cidade, haverá os que conheçam seu bairro, algo do coração do bairro, ou ao menos algo de sua rua. Às vezes, quanto mais fechamos o foco, um mais estranhamente rico e misterioso mundo aparece, por exemplo, só de ouvir um coro de uivos desde um quadrado de quintal aberto às estrelas.

Que bom seria cada cronista deste mundo ter uma praça que alcançasse por muito frequentá-la, ou, quem sabe, com a melhor das sortes, por morar à sua volta e assim de perto sentir-lhe o cheiro das jacas e os brilhos horários dos verdes, e ouvir-lhe o alarido de meninos e meninas de manhãzinha, bem na hora das maritacas, e entrever-lhe os gatos à noite como sombras de si mesmos, e absorver-lhe os lamentos dos bêbados dos bares de esquina numa espiritual cumplicidade com o álcool que os consola e delicia. Que bom um cronista zelando pelos sonhos de uma praça, de madrugada, em silenciosa colaboração com os vigias.

Seria outro cosmo tangível dentro do cosmo cada praça amada por um cronista, com suas vozes, seus pássaros, seus cachorros, suas damas-da-noite e figuras pensativas. Como alguém aqui, anteontem, com um acordeão, enchendo o ar da praça com a música tema d’O poderoso chefão. Uma mulher cantava. Rodeando a praça, a música entrou aqui no salão, e, pelo que reavivou em mim, acabou entrando nessa crônica. Sabe-se lá o que provocará em quem lê, mas a mim o acordeão fez dançar uma tristeza profundíssima, daquelas tão antigas e conviviais que o mais que inspiram, quando atiçadas, é um sorriso.

Há também por aqui, em certas noites, um violão que toca Gonzaguinha, Geraldo Azevedo, Caetano, Chico, Bituca. Vibra um passado bonito de cantar de novo, transplantado para o corpo desse tempo que concomitantemente adolesce em grupo nos bancos da praça e que ainda brinca de correr atrás dos gatos, nunca apanhando-os e nunca desistindo de apanhá-los. A grande história é o fundo rumoroso em que se engastam, vizinhas e fogosas, nossas pequenas vidas com ritmo próprio excepcionalmente afinadas. E se o cronista a serviço do coração de um bairro, ou de uma praça, ou de uma rua, de repente fosse lido por esses mesmos que o povoam e inspiram? Parece fantasioso, de tão bom que seria, esse cosmo tangível dentro do cosmo. Parece mágico. Impossível não é.

Mariana Ianelli

Nasceu em São Paulo em 1979. Formada em jornalismo, mestre em literatura e crítica literária, estreou na poesia em 1999 com Trajetória de antes. Em 2013, estreou na crônica com Breves anotações sobre um tigre. É também autora de dois livros infantis. Desde agosto de 2018, edita a página Poesia Brasileira no Rascunho. Escreve quinzenalmente, aos sábados, na revista digital de crônicas Rubem.

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