Tomo um famoso verso do Sr. Bituca e vou ali com ele atĂ© a praça. “Todo artista tem de ir aonde o povo está”, ora sim! Como nĂŁo? Considerando, claro, que, para o caso de um escritor, se podemos colocá-lo entre os artistas, já que entre artistas em geral um escritor se sente em casa, ir aonde o povo está nĂŁo necessariamente significa que um escritor tenha de sair ele mesmo a viajar daqui para lá. Afinal, nem bem passamos a cancela da literalidade, Ă© a palavra que viaja paĂses e sĂ©culos.
Mais matizada fica a alma do verso do Bituca se pensarmos num cronista, para quem os assuntos e tipos das ruas importam substancialmente para a prática do ofĂcio. Haverá, pois, entre esses, os que conheçam sua cidade pelos pĂ©s, que por sua vez levam a vagar horizontalmente a atenção de olhos e ouvidos. Se nĂŁo a cidade, haverá os que conheçam seu bairro, algo do coração do bairro, ou ao menos algo de sua rua. Ă€s vezes, quanto mais fechamos o foco, um mais estranhamente rico e misterioso mundo aparece, por exemplo, sĂł de ouvir um coro de uivos desde um quadrado de quintal aberto Ă s estrelas.
Que bom seria cada cronista deste mundo ter uma praça que alcançasse por muito frequentá-la, ou, quem sabe, com a melhor das sortes, por morar à sua volta e assim de perto sentir-lhe o cheiro das jacas e os brilhos horários dos verdes, e ouvir-lhe o alarido de meninos e meninas de manhãzinha, bem na hora das maritacas, e entrever-lhe os gatos à noite como sombras de si mesmos, e absorver-lhe os lamentos dos bêbados dos bares de esquina numa espiritual cumplicidade com o álcool que os consola e delicia. Que bom um cronista zelando pelos sonhos de uma praça, de madrugada, em silenciosa colaboração com os vigias.
Seria outro cosmo tangĂvel dentro do cosmo cada praça amada por um cronista, com suas vozes, seus pássaros, seus cachorros, suas damas-da-noite e figuras pensativas. Como alguĂ©m aqui, anteontem, com um acordeĂŁo, enchendo o ar da praça com a mĂşsica tema d’O poderoso chefĂŁo. Uma mulher cantava. Rodeando a praça, a mĂşsica entrou aqui no salĂŁo, e, pelo que reavivou em mim, acabou entrando nessa crĂ´nica. Sabe-se lá o que provocará em quem lĂŞ, mas a mim o acordeĂŁo fez dançar uma tristeza profundĂssima, daquelas tĂŁo antigas e conviviais que o mais que inspiram, quando atiçadas, Ă© um sorriso.
Há tambĂ©m por aqui, em certas noites, um violĂŁo que toca Gonzaguinha, Geraldo Azevedo, Caetano, Chico, Bituca. Vibra um passado bonito de cantar de novo, transplantado para o corpo desse tempo que concomitantemente adolesce em grupo nos bancos da praça e que ainda brinca de correr atrás dos gatos, nunca apanhando-os e nunca desistindo de apanhá-los. A grande histĂłria Ă© o fundo rumoroso em que se engastam, vizinhas e fogosas, nossas pequenas vidas com ritmo prĂłprio excepcionalmente afinadas. E se o cronista a serviço do coração de um bairro, ou de uma praça, ou de uma rua, de repente fosse lido por esses mesmos que o povoam e inspiram? Parece fantasioso, de tĂŁo bom que seria, esse cosmo tangĂvel dentro do cosmo. Parece mágico. ImpossĂvel nĂŁo Ă©.