🔓 Olhar para trás para saber quem somos

Uma conversa com Daniel Munduruku sobre a experiência indígena na arte, a força da literatura oral, as amarras do cânone e a necessidade de se reconectar com a natureza
Ilustração: Carolina Vigna
27/02/2021

Conversa com Daniel Munduruku

1.
Carola: Um assunto que sempre aparece entre escritores é a questão trabalho/inspiração. Eu por muito tempo achei que a inspiração era algo que surgia a partir do trabalho. Mas agora tenho as minhas dúvidas. Talvez ela surja de uma conexão nossa com o inconsciente, ou com o mundo espiritual. Outro dia li num livro sobre as culturas aborígenes da Austrália e que alguns desses grupos (ainda) têm o seguinte costume: todos os dias de manhã, a pessoa se levanta, vai fazer uma caminhada e durante a caminhada ela canta aquilo que sonhou. A ideia é que através desse canto (que no fundo é um poema), ela possa mostrar para os animais e outros seres da natureza que está conectada com o mundo dos sonhos (ou com o seu inconsciente, como preferirmos). Assim, ela terá mais sorte na caça e na vida. Como é para você essa relação do mundo dos sonhos/espiritual com a escrita? Quando você escreve, que outras forças escrevem contigo, através de você? Eu tenho cada vez mais a impressão de que o autor (ao contrário do que diz a cultura ocidental) nunca escreve sozinho.

Daniel: Sou uma pessoa bem conectada com a natureza. Aprendi desde criança que é importante aguçar todos os sentidos para deixar que sons, odores, superfícies, luzes, ventos entrem em harmonia com o meu ser. Quando penso em escrever deixo que estes “elementos” tomem formas dentro de mim e se deixem expressar em palavras escritas. Raramente anoto ideias. Raramente escrevo rascunhos. Vou sentindo as palavras tomarem conta de minha escrita. Claro que sei que com outros autores as palavras fazem outros movimentos para serem ditas e alcancem seus objetivos. Acredito que escrever é dar formas a um mundo que não é meu, mas que se utiliza de mim para existir. Há uma certa magia da qual os que escrevem acabam sendo instrumentalizados. Daí porque não acredito em talento ou mérito. Quem se esforça demais em escrever está lutando contra a natureza. Também sei que as palavras precisam de tempo para ganharem forma, mas elas estão sempre disponíveis para quem tem sensibilidade. Penso que a vida como experiência é, em si, pura literatura. Alguns a vivem como drama; outros, poesia; outros, romance; outros, ficção. Isso depende sempre de como e onde se vive. As experiências vividas são sempre versos únicos de uma mesma obra. Uni-versos, talvez.

Carola: Você falou em talento. É um assunto que sempre surge, ter ou não ter talento para escrever. Me parece que a ideia de “talento”, assim como a de “gênio” é um reflexo da sociedade ocidental, muito centrada no indivíduo, é o sujeito sozinho que vai escrever a “grande obra”, graças ao seu talento pessoal. E assim separamos a arte, o fazer artístico, restringindo-o a um pequeno número de “escolhidos” pelo talento. As crianças criam, fazem arte naturalmente, depois isso vai se perdendo, é uma pena. Penso muito em como seria se o tornar-se adulto não significasse essa separação, se todos pudessem dar vazão a essa energia criativa, e se a arte não fosse restrita apenas a lugares específicos, museus, galerias, livros. Que força revolucionária isso teria. Como você disse, a vida como experiência, é pura literatura.

Daniel: Uma das defesas que tenho feito na área da educação das crianças é justamente a necessidade de fazer “um caminho de volta”. Isso quer dizer que é preciso oferecer às crianças sua capacidade de falar consigo mesmas sem a intermediação da escola. Embora compreenda a “armadilha” da economia neocapitalista que obrigou a sociedade a ter uma nova configuração, penso na necessidade de educarmos as crianças para o hoje, para o presente, para o agora. Não é mais admissível oferecer futuro às crianças por uma razão muito simples: elas podem não chegar lá para usufruí-lo. Na primeira infância é importantíssimo oferecermos condições para que as crianças sejam plenamente crianças. Só assim teremos adultos equilibrados. Na minha concepção, o Brasil só vai avançar quando a gente puder dar melhores condições à fantasia das crianças.

2.
Carola: O xamã Davi Kopenawa diz: “Os brancos só sonham com eles mesmos”.

Daniel: Faz parte da experiência vivida. Chamamos de homem branco o ocidental com o qual temos contato. Normalmente é o ocidental que faz a experiência de ser linear fugindo de sua constituição natural ou de seu pertencimento à natureza. Não vale para todos os ocidentais esta afirmação, mas creio que foi o ocidental que escolheu sonhar consigo mesmo. O ocidental é um ser solitário. Aprendeu a ser assim quando aceitou se desconectar com o todo. O egoísmo é a idolatria do ocidente. Ao escolher “ser alguém”, brigou com o coletivo que mora em si. Ao buscar sua realização pessoal, esqueceu o que é o outro e mergulhou na ilusão da meritocracia. Está sendo usado sem o saber. O sonho sonhado — para diferenciar do sonho como desejo — é reflexo do que nos alimenta quando estamos acordados.

Carola: Sim, acho que você tocou num ponto central, a solidão do indivíduo desconectado de tudo, da natureza, do coletivo, e de si mesmo. Fico pensando, talvez em certas formas de arte, de dança, de música, de transe, talvez em certos momentos seja possível essa reconexão com o outro, talvez ali, nessas experiências, seja possível construir no imaginário algo que possa tomar forma no mundo concreto depois: uma coexistência respeitosa, equilibrada com todos os seres, com tudo o que há.

Daniel: Não tenho dúvidas de que é necessário e urgente fazermos esta reconexão. No entanto, confesso, não tenho esperanças de que isso aconteça. A geração adulta deste tempo que vivemos já foi muito pressionada a “ser alguém” na vida. Isso significa que nossas mentes estão atoladas de vícios do consumo, do egoísmo, do individualismo. É uma geração que não sabe mais olhar para trás para buscar sentidos da existência. É uma geração voltada para a ficção chamada futuro. Reconectar-se exige — como a palavra diz — uma volta, um retorno, uma inflexão. Isso nossa gente de hoje não sabe fazer. Já estamos robotizados. De qualquer maneira, acredito que há um cantinho intocado que ainda pode ser “reprogramado”. Este é o cantinho da fantasia, do lúdico, da delicadeza que habita no coração das crianças.

3.
Carola: Tem uma frase do Walter Benjamin que faz muito sentido pra mim: “Só devassamos o mistério na medida em que o encontramos no cotidiano”. Cada vez mais me entusiasma a poesia das pequenas coisas, rotinas, crianças brincando, um cantarolar no chuveiro, um banho de cachoeira, um café recém feito, um gesto que fica pela metade. Para você, onde mora o mistério?

Daniel: O mistério mora no que nos parece insignificante: no criptar do fogo, na queda de uma folha, nas bolhas de sabão, no estranho prazer de ver a chuva cair, na teia da aranha que a tece a partir de um único fio, na ordem que há no mundo que funciona sem nossa permissão. Meu avô tinha uma frase lapidar para isso. Ele dizia: “Meus netos, só existem duas coisas importantes para sabermos na vida. 1) Nunca se preocupem com coisas pequenas; 2) Todas as coisas são pequenas”. Ponto.

4.
Carola: Eu gosto muito da sua obra, e sempre volto a alguns dos seus livros, um deles é O Karaíba: Uma história do pré-Brasil. Na apresentação você diz: “ESTA É UMA HISTÓRIA DE FICÇÃO. NÃO ACONTECEU DE VERDADE, MAS PODERIA ter acontecido. Isso porque o que narro aqui são acontecimentos que antecederam a chegada dos portugueses em terras brasileiras. Não existem, portanto, registros escritos do que havia antes a não ser as inscrições das cavernas, que nos obrigam a um exercício de imaginação e pesquisa se desejarmos remontar um pouco do que de fato aconteceu”. Gosto demais desse livro porque ele funciona como uma escrita do passado, um passado coberto por uma espessa bruma de silêncio. Então você cria, através das palavras, da ficção, uma vida para esse passado, uma história, e ao fazê-lo transforma também o futuro (e o presente). Fala-se muito em futurismo indígena, mas por que não pensar também numa classificação para esse tipo de utopia do passado? Porque, para os povos indígenas do continente, a história pregressa (anterior à chegada dos europeus) é uma história não escrita, e que talvez só possa ser escrita pela ficção. Pelo passado que cada um carrega no corpo, pelo saber coletivo.

Daniel: Sou um ferrenho defensor do hoje como tempo ideal. Reconheço a memória como algo necessário para não esquecermos quem somos, de onde viemos e o que fazemos neste mundo. No entanto, não penso no passado como uma prisão. Ao contrário, o passado é a única garantia de se viver livremente no tempo presente. Penso o presente como um PRESENTE que se recebe do universo. A cada dia basta sua preocupação, dizia Jesus. Faz parte das tradições do mundo essa ideia. Ela é uma dessas palavras que circundam o mundo e que é experimentada pela memória ancestral. É uma palavra circular. Esses povos antigos, do mundo todo, não ostentam o futuro como tempo ideal. O futuro é uma palavra linear. Ele caminha sempre para frente como uma maldição. O presente conversa com o passado. O futuro é um tempo solitário. Gosto da palavra utopia por ser sinônimo do não-lugar. Gosto da palavra esperançar mais do que esperança. Gosto da ação, mais do que a espera. Temos que inventar palavras novas para dizer o que está inscrito no que ainda não foi dito.

Carola: Sim, com certeza, precisamos inventar palavras novas para dizer o que ainda não foi dito (e nem pensado). É uma questão essencial, como pensar o que ainda não foi pensado? Como nos permitir essa travessia? Quanto ao tempo, você resumiu a questão: “O futuro é uma palavra linear”. E de certa forma vivemos uma grande aceleração desse futuro, que vai ficando cada vez mais rápido, mais rápido, feito um carro desgovernado. Lembrei agora da frase de Lévi-Strauss referindo-se a São Paulo: “Aqui tudo parece construção mas já é ruína”.

Daniel: Uma das coisas que me parecem mais formidáveis na existência é o ócio. Não o ócio criativo. Aliás, nem acredito que alguém que aproveite seu tempo livre para criar esteja, de fato, livre. Penso o ócio como um tempo para si mesmo. Eu, para dar um exemplo, me esbaldo assistindo televisão vez ou outra. Faço isso por um estranho prazer de nada pensar, nada fazer. Qual o impacto disso em minha criação posteriormente não sei dizer, mas procuro dar vazão às minhas sombras que pedem um pouco de coisa nenhuma. Isso me tranquiliza, penso. De certa forma, creio que o que há de originalidade no que criamos é a perspectiva que damos ao que nos é mais peculiar. Eu gosto, por exemplo, da expressão: “O ponto de vista é a vista de um ponto”. Estou sempre procurando o olhar, o que vejo a partir da perspectiva do que não vejo. Isso me permite não julgar a partir do meu lugar de observação. Parece que já não estou falando coisa com coisa.

5.
Carola: Este ano o escritor mapuche Elicura Chihuailaf ganhou o Prêmio Nacional de Literatura, o maior prêmio literário do Chile. No Brasil, estamos ainda muito longe disso? Ou mais perto do que imaginamos?

Deixo aqui um de seus poemas (tradução minha).

Neste solo habitam as estrelas
Neste céu canta a água da imaginação
Além das nuvens que surgem
de estas águas e de estes solos
nos sonham os antepassados
Seu espírito — dizem — é a lua cheia
O silêncio seu coração que bate

Daniel: Adoro a poesia do Elicura (eu o trouxe para um evento na Universidade Federal de São Carlos), assim como gosto demais das poesias dos povos latino-americanos. Trazem a sensibilidade a que me referia antes. Elas estão conectadas com o indizível. Estão mais próximas da oralidade. Neste sentido, são mais literárias. A literatura produzida por indígenas brasileiros é mais pragmática, mais militante no sentido da necessidade de estamos o tempo todo procurando justificar nossa existência. Isso tem reflexo direto numa produção voltada para um público infantil e juvenil, com menor ressonância nos leitores da chamada literatura adulta. Este ano o [Ailton] Krenak recebeu o troféu Juca Pato. Foi considerado o intelectual do ano. Isso é ótimo para o movimento indígena, mas não o torna um escritor reconhecido até porque seus “livros” são frutos de suas falas, seus discursos, sua oratória. Falo isso do ponto de vista do cânone acadêmico que é, em última análise, quem repercute a produção literária. Tenho sempre o cuidado de considerar a possibilidade de a sociedade brasileira não estar — ao oferecer prêmios a indígenas ou negros — cometendo o pecado do “politicamente correto”, como se quisesse apagar a ferida que está aberta nas veias de sua história (para usar o termo cunhado por Eduardo Galeano).

Carola: Elicura se autodenomina um oralitor, acho muito interessante essa definição, que remete a literatura oral, ou seja, um escritor cujo trabalho está baseado na oralidade e não no texto escrito. Sim, o Ailton tem um livro belíssimo, O lugar onde a terra descansa, que teve um processo de escrita totalmente diferente, a origem são gravações, numa entrevista ele comenta que gravou numa espécie de transe. Eu acho isso de uma riqueza imensa, não reconhecer obras desse tipo como literatura é um sintoma, assim como classificar a maior parte da produção literária indígena como infantojuvenil. Em muitos casos, trata-se apenas de posicionar o livro no mercado, bastaria um trabalho de edição. É preciso mudar o sistema, ele precisa se abrir a outras manifestações da literatura. E isso precisa passar por uma transformação real no sistema literário, no cânone e nas próprias pessoas. Torço para que isso aconteça, cada vez mais, só temos a ganhar, todos nós.

Daniel: Oralitura é um dos termos cunhados para expressar essa espécie de mediação entre escrita e fala. Graça Graúna, uma poeta maravilhosa do povo Potiguara, tem defendido desde há muito tempo essa integração. Até acredito que ela já aconteça em níveis ainda sutis. Percebo isso quando vejo o crescimento da literatura de cordel que, a meu ver, é a expressão mais brasileira dessa poesia cantada pela sonoridade nordestina que também é certificada pelas cantigas dos repentes. Eu diria até que o cordel é uma evolução delicada da oralidade. Isso porque é uma literatura reconhecida. A oralidade jamais alcançará este status justamente porque o que a caracteriza é a espontaneidade do “falador”, do contador de histórias. Oralidade não é um princípio comum de se entender ou aceitar. Para praticar a oralidade não basta falar. A oralidade tem seus dogmas também, princípios norteadores. Isso eu acho bárbaro!

6.
Carola: Em O banquete dos deuses você conta, entre outras coisas, a história de um grupo de professores que foi à aldeia estudar os costumes indígenas, uma professora se aproxima de um dos anciões e pergunta: “O senhor sabia que o homem já foi à lua?” O velho nem levantou a cabeça, continuando do mesmo modo. A professora não se contentou e repetiu a pergunta, mas o velho não deu nenhuma resposta sequer. Indignada, a pesquisadora falou mais alto: “O senhor sabia que o homem foi à lua?” O velho, então, levantou-se bem lentamente e, olhando nos olhos da moça, respondeu com um ar professoral: “Já sei, sim, senhora. Sei. Eu estava lá!”. É um trecho muito bonito e no fundo o que ele está dizendo é algo como “sim, eu estava lá porque a lua está em mim”. Ao menos é a minha interpretação. Muitas vezes você traz para a literatura aspectos da narrativa oral, e eu penso que a cultura ocidental, branca, costuma olhar com preconceito para essa tradição e desde o Renascimento passou a relegar a tradição oral à literatura para crianças ou jovens, como aconteceu com as fábulas, os contos de fada, narrativas que originalmente eram pensadas para todos. Eu sinto que a literatura indígena pode abrir caminhos para repensarmos essas questões, e a própria literatura como um todo, seu cânone, afinal, o que é a literatura? Quem define o que é ou não é literatura?

Daniel: Tenho defendido que nossa literatura é indígena porque escrita por pessoas que se autodeclaram assim. Essas pessoas têm diferentes experiências de vida: algumas pertencem a povos que têm contato antigo com a sociedade; outras, têm um contato intermitente. Isso significa dizer que há quem já está com um grau de contato maior e já passou pela educação formal, foi para a universidade ou tem experiência com a palavra escrita. Outras pessoas não usam a escrita como seu principal suporte de comunicação com a sociedade e trazem consigo o símbolo da oralidade. Chamo de indígena para ambas experiências, embora saiba dessas disparidades. Para além disso, defendo a ampliação do conceito de literatura para abranger outras formas indígenas de contar suas histórias: cantos, rezas, grafismo corporal, entre outras. Claro que a academia não vai considerar essa possibilidade. Não agora, não de imediato. Vai levar um tempo para que ela descubra que sim, há outras maneiras de fazer literatura. Assim, estamos defendendo as literaturas indígenas. Como isso repercutirá na compreensão acadêmica da literatura não faço ideia, mas creio que isso já é o início de uma “virada” que irá acontecer nos próximos anos, até porque a qualidade do que é produzido por indígenas está cada vez mais se impondo no Brasil.

Carola: Com certeza, precisamos com urgência ampliar o conceito de literatura, assim como repensar questões estéticas e de gênero. O grafismo corporal, por exemplo, integrá-lo à literatura seria abrir a literatura para uma escrita no corpo e do corpo, a relação corpo e literatura em geral é pouco compreendida na cultura ocidental. Uma vez eu tive um problema muito sério no pulso, não conseguia escrever, fiz uma série de tratamentos, remédios, fisioterapia e nada, no final o único médico que conseguiu me ajudar foi um acupunturista chinês que pegou uma fita de esparadrapo e enrolou na minha mão, a dor sumiu magicamente. Ele me explicou que a técnica havia sido desenvolvida no Japão, mas que tinha por base o conhecimento da acupuntura, ou seja, a relação energética corpo e mente e a forma como essa energia vital flui no corpo. Eu sempre me lembro disso quando penso nos grafismos indígenas, me faz compreender, ou imaginar, que a escrita no corpo não é como uma escrita num papel, mas que ao escrever no corpo intervimos em seu próprio funcionamento, e não só no aspecto estético ou simbólico. Compreender isso de alguma forma nos obriga e repensar o lugar da palavra na conexão entre corpo e alma (ou como quisermos chamar).

Daniel: Isso tudo tem a ver em como a gente lida com o tempo. Os artistas plásticos normalmente entendem bem essa lógica porque sabem que a “pressa é inimiga da perfeição”. Muitas vezes, no entanto, o ato de produzir arte não coaduna com a arte de viver. Isso vira profissão. Entre os indígenas não existe essa desconexão entre o que faço e o que vivo. O tempo passa pequeno do mesmo jeito. É como se tudo fosse arte: plantar, colher, cantar, dançar, pintar, descascar mandioca, caçar, pescar, comer, dormir, fazer amor. Isso é uma prática milenar de bem viver que hoje está cada vez mais impactada pelos barulhos das grandes cidades, transformando o tempo indígena. O certo é que desvincular a ação pela sobrevivência das necessidades da existência acaba determinando o modo como você encara sua própria condição humana. Mais uma vez: fazer as crianças viverem seu presente seria a única maneira de experimentarem que só existe o SER.

7.
Carola: Nesta semana, no encerramento da exposição Véxoa, na Pinacoteca de São Paulo, houve uma performance do Jaider Esbell e da Daiara Tukano, eles ocuparam simbolicamente o museu, colocando a arte indígena no mesmo espaço da arte canônica. Assisti ao vídeo e foi muito emocionante. Não seria o momento de fazer isso na literatura também? Da minha parte, te convidar para esta conversa é a minha forma de fazer isso, trazer a literatura indígena para espaços onde em geral ela não aparece, criar diálogos, na esperança de que com o tempo, isso se torne cada vez mais comum.

Daniel: Eu diria que o campo da literatura é mais delicado que o campo das artes plásticas e visuais. Aqui não se trata de fazer juízo de valor, mas considerar que a produção literária passa por uma exigência maior do “deus mercado”. Para dar uma ideia disso: há 18 anos realizamos o encontro de escritores e artistas indígenas no contexto da Fundação Nacional do Livro para Crianças e Jovens. Muitos escritores indígenas foram frutos desses encontros. Abrimos caminho para o surgimento de um mercado editorial para o segmento; influenciamos na criação da Lei 11.645/08; participamos das principais feiras e bienais do livro no Brasil e no Exterior; realizamos quatro edições do podcast Mekukradjá em parceria com o Instituto Itaú Cultural, sempre trazendo os artistas indígenas juntos; fizemos com que livros de autores indígenas fossem escolhidos nos editais governamentais; em 2017 tivemos dois autores indígenas vencedores do Jabuti, entre outras coisas. Nós fizemos mais, mas somos vistos como menos no cenário das artes. Nossos livros não fazem parte das vitrines das grandes livrarias. Por que será? Minha intuição diz que é porque há mais exigências em torno da literatura que é vista com certo ar de superioridade pelas elites e porque lida com um imaginário que a sociedade faz questão de manter oculto. É uma questão para se pensar. Já fiz essas mesmas considerações num artigo para o site do Itaú Cultural, que se intitula Minha literatura não é subalterna, e está disponível para quem desejar conhecer.

Carola: Gosto muito desse seu artigo, quando comecei a pesquisar sobre literatura indígena, foi uma das minhas primeiras leituras, assim como as edições do Mekukradjá, ali estão algumas das ideias e questões principais para se pensar a literatura indígena. Cito um trecho do seu texto:

A meu ver, há algumas contradições muito presentes na sociedade brasileira que levarão algum tempo para ser resolvidas, o que passa pela aceitação do “modus vivendi” das populações indígenas. De alguma forma isso está presente não apenas na discussão sobre se o indígena pode ou não escrever com a mesma qualidade dos “letrados” brasileiros, mas também na própria discussão sobre a identidade nacional e sobre se esses “selvagens” têm o direito de fazer parte dela sem deixar de ser o que são.

Fico pensando, nessa passagem você aponta para o que talvez seja a questão principal, a identidade. Afinal, quem somos nós enquanto país? Que grupos e etnias enxergamos e que grupos e etnias tornamos invisíveis. O Brasil ainda vive o mito da democracia racial, um mito que entre outras coisas, fez com que indígenas e negros “desaparecessem” em prol de uma integração e de um branqueamento imaginário. Nesse sentido, me parece, trazer a literatura indígena para o “sistema literário” (e não só ela) é ocupar espaços, é tornar visível (e audível) as vozes silenciadas, que na realidade são a maioria da população. E me veio à mente um poema (belíssimo) da Graça Graúna, que de certa forma dialoga com tudo o que estamos conversando:

Reverso do cárcere

alta madrugada
o coro entoava
estamos todos aqui
no ofício de ser
criador
criatura
traçando, tecendo
das circunstâncias
vertentes.
Assim, torno a ver
no reverso do cárcere
o lado negro e cru
do ofício de escrever

Daniel: Costumo defender que o Brasil tem vocação para a felicidade. Isso nos é possível por conta da diversidade que compõe a formação de nossa identidade. Acontece que fomos e somos educados para esquecer, negar, ocultar e negligenciar nossas origens. O discurso do colonizador fez um estrago gigantesco na autoestima brasileira. Não conseguimos nos desvencilhar disso de maneira nenhuma. Somos estruturalmente educados para o machismo, o racismo, a homofobia. Acredito que, para que se reverta nosso estigma de cachorros vira-latas, precisaríamos nos reconciliar com o passado escravocrata que mora em nossa memória. Isso nos libertaria verdadeiramente. Quando essa tal liberdade chegar, entenderemos quem somos e porque somos o que somos. O horizonte estará aberto para nós enquanto povo, enquanto nação, enquanto brasileiros. Mas, “nos deram um espelho e vimos um mundo doente”, como diria Renato Russo. Antes de vermos o mundo doente (reflexo do passado não devidamente resolvido), nos apresentaram o mundo do colonizador como um ideal a ser alcançado. Isso nos obriga a não olharmos para trás para encontrarmos nós mesmos. Assim, seguimos com a ilusão de “um dia ser alguém”, desde que seja ser também aquele que nos tortura: o colonizador.

Daniel Munduruku
Nasceu em Belém (PA), em 1964. Professor e escritor, pertence ao povo indígena de seu sobrenome. Com 23 anos de carreira literária, publicou mais de 50 livros. Ganhou alguns dos principais prêmios nacionais, como o Jabuti e o da Academia Brasileira de Letras. Wahtirã: a lagoa dos mortos e Vozes ancestrais, ambos lançados em 2016, são dois de seus livros.
Carola Saavedra

É autora, entre outros, dos romances Flores azuis (eleito melhor romance pela Associação Paulista dos Críticos de Arte), Paisagem com dromedário (Prêmio Rachel de Queiroz na categoria jovem autor), O inventário das coisas ausentes e Com armas sonolentas. Seus livros foram traduzidos para o inglês, francês, espanhol e alemão. Está entre os 20 melhores jovens escritores brasileiros escolhidos pela revista Granta. Desde 2019, é professora e pesquisadora na Universidade de Colônia.

Rascunho