🔓 O Rilke da minha avó

Ao fazer a mudança, surge um livro que ecoa na memória uma letra a sussurrar: “mesmo sem boca eu posso chamar-te!”
Ilustração: “Interior de sacristia”, Arcangelo Ianelli
18/12/2021

A primeira vez que li um poema de Rilke foi na letra bem desenhada da minha avó. O calafrio que aquilo me deu. Só mais tarde descobri que o poema estava n’O livro de horas e que minha avó o tinha copiado na tradução de Geir Campos. E o que dizia o poema? Em síntese de um verso, mais ou menos isto: tira-me tudo e ainda te tenho em mim. E o que havia aí exatamente que causasse calafrio? Talvez que a oração de Rilke se tornasse um poema de amor obsessivo, ali, na letra meio redonda meio arrebitada da avó.

Era mesmo pouco provável que a avó tivesse copiado aquele poema como uma oração. Trocando em miúdos, ela pensava no avô. E o avô, em seus anos de pintura figurativa, esmerava-se nas sombras dos interiores de sacristia, nas pequenas mechas de fogo contra o escuro das capelas, nas cruzes das pequenas campas brancas dos cemitérios.  Numa breve incursão cubista, pintou a descida da cruz, um Cristo azul sem rosto, algumas freiras num interior de convento, entre as quais minha mãe menina, feito uma santinha, com um véu, servindo de modelo.

Também na fase geométrica da década de 1970, o avô fez alguns estudos em azul e branco para vitrais de igreja. Se lhe perguntassem sobre a matéria do seu interesse, ele possivelmente diria que o que lhe interessava, fosse qual fosse o assunto, eram as questões próprias da pintura, e que sacristias e cemitérios ou a geometria de cruzes e raios de luz das igrejas propiciavam ótimas condições para os seus estudos. Que ele tratava com igual desvelo no manejo do pincel um altar e um prato com maçãs, uma freira e um nu de costas. Que pintava cruzes como pintava mastros e bambuzais. A liturgia se dava no ateliê. E, sim, na fase das vibrações cromáticas dos anos de 1990, ele gostava de ouvir Bach.

Agora que vou terminando de encaixotar minha biblioteca, nesta casa vazia, reencontro O livro de horas na tradução de Geir Campos. Uma edição gasta, ainda com selo da livraria Klaxon. Vou aos poemas Da Peregrinação e lá está o Rilke da minha avó. Volto décadas na memória daquela letra desenhada que sussurra: “mesmo sem boca eu posso chamar-te!”. É ela, ironicamente ela, a avó, que me leva a ler de novo aqueles versos, agora dentro de um dos interiores ensombrados e quietos dos quadros do avô.

Mariana Ianelli

Nasceu em São Paulo em 1979. Formada em jornalismo, mestre em literatura e crítica literária, estreou na poesia em 1999 com Trajetória de antes. Em 2013, estreou na crônica com Breves anotações sobre um tigre. É também autora de dois livros infantis. Desde agosto de 2018, edita a página Poesia Brasileira no Rascunho. Escreve quinzenalmente, aos sábados, na revista digital de crônicas Rubem.

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